Com ‘Besta Fera’, Jards Macalé radiografa caos social no Brasil em um dos discos do ano

 em música

Um dos grandes ‘malditos’ da música brasileira exibe beleza, lirismo e desesperança em disco de inéditas que remarca sua importância na história

Jards Macalé voltou após duas décadas ausente das canções autorais e, para ser objetivo, ‘Besta Fera‘ é o melhor disco do Macao desde sua estreia em 1972, com seu álbum homônimo. Tanto à época do período mais brutal da ditadura militar como neste já sufocante 2019, que em apenas dois meses causa mal estar com episódios seguidos de grande comoção, Jards soube radiografar o estado de coisas com habilidade inata — seu olhar cru e irônico se cruza com seu cancioneiro mais romântico e melancólico, fruto do amor pelo samba que sempre o acompanhou. Produzida pelo guitarrista Kiko Dinucci (Metá Metá) e pelo bateristaThomas Harres, acompanhado de nomes comoJuçara Marçal, Rômulo Fróes (que cuidou da direção artística) e Tim Bernades, a obra deste grande ‘maldito’ da MPB tem muito a dizer. E o faz com mestria.

Essencialmente, ‘Besta Fera‘ aponta para o samba e suas vertentes, mas resvala no experimentalismo e no punk rock, tão caros a Dinucci, em uma estética acertada com o lirismo de Macalé, que utilizou parceiros (incluindo o poeta barroco Gregório de Matos) nas 12 composições. A capa do disco exibe um Jards à contraluz, em belíssima fotografia de Cafi, morto em janeiro. A abertura, ‘Vampiro de Copacabana’, resume bem o espírito do disco: um samba torto, à moda dos envolvidos, que corre com dissonâncias e tempos quebrados, enquanto Macao canta que o bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro só tem gente estranha em suas esquinas. A faixa título, com o toque do cavaquinho de Rodrigo Campos, reflete sobre o caráter da humanidade em ritmo envolvente.

Trevas‘, composta sob um poema do simpatizante fascista Ezra Pound, volta às dissonâncias enquanto Jards imagina um futuro apocalíptico e decreta que ‘chegamos ao limite da água mais funda/trevas mais negras sobre homens tristes’ e o faz até debaixo d’água destilando fina ironia. O samba-canção em sua face triste e arrependida vem na parceria com Tim Bernardes, da banda O Terno, em ‘Buraco da Consolação‘, cujo dueto é um dos grandes destaques do álbum. ‘Pacto de Sangue‘, uma das antigas do repertório, dá um aceno para o realismo fantástico, com o toque da versátil guitarra de Dinucci. ‘A cidade misteriosamente cresce/pacto de sangue que todos fizerem e desconhecem’, avalia Jards, escorado por Capinam.

Na minimalista ‘Obstáculos‘, outra de safra antiga, Macalé e seu violão falam de levar a vida, mesmo que de forma resignada. Em seguida, ‘Meu Amor Meu Cansaço‘, samba em clima de bolerão, mostra um Macao afiado, rendido à força da mulher amada sob uma cama de ruídos que vão e voltam. ‘Tempo e Contratempo‘, outro samba afiado composto há mais tempo, deve conquistar o público nos shows e é candidata a hit. ‘Peixe‘ traz Juçara Marçal em música que poderia estar em qualquer disco do Metá Metá e o canto cadenciado de Jards se encaixa perfeitamente nesta reflexão sobre vida e morte. Já ‘Longo Caminho do Sol‘ vai para a face do samba paulista, na companhia de Rômulo Fróes e versa sobre dores do mundo. ‘Tudo que eu vi era um sol/E tudo que havia era um sol/Tudo fervia num mar de larvas‘.

Limite‘, com letra de Ava Rocha, casa com o início do disco, desta vez com um Jards à beira do abismo, que ri enquanto o caos aparece em sua frente e descobre que não há para onde escapar (talvez na arte?). Com a intensa ‘Valor‘, voltamos aos anos 80, quando o compositor a gravou e o disco se encerra com grande beleza. ‘Não quero que saibam o valor de minhas canções/se boas ou más pouco me importam‘, canta, incisivo. Na verdade, pouco importa. ‘Besta Fera‘ é um dos pontos mais altos da carreira uma das figuras essenciais ao Brasil e mostra que Jards Macalé remarca sua história com sabedoria e habilidade.

Avaliação: Excelente

 

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