Ave Sangria retorna com disco inédito após 45 anos

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Cultuada – e censurada durante a ditadura – banda traz à tona psicodelia pernambucana com 11 canções inéditas em ‘Vendavais’.

Não faz muito tempo que conheci a banda Ave Sangria. Foi durante a Copa do Mundo realizada no Brasil, enquanto era DJ em uma laje chique no Morro do Cantagalo, Zona Sul do Rio. Na época, eu pesquisava o que constantemente chamamos de “brasilidades” e a dançante versão original de “Seu Waldir”, também gravada por Ney Matogrosso, caiu aleatoriamente no meu colo.

O público da casa, que infelizmente fechou as portas, era formado em grande parte por gringos, que vieram torcer por seus países enquanto viríamos a lamentar o 7 a 1… Mas isso é outra história. Era curioso observar a reação daquelas pessoas para as sonoridades brasileiras, ainda que não entendessem uma palavra do português. Eu, que sempre fui muito chegado nas letras também, fiquei admirado como, em 1974, em plena ditadura militar, esse grupo cantava sobre diversidade com muito humor, mesmo sem escapar das garras da censura.

Histórico

Que bom “redescobrir” a psicodelia pernambucana, um estado já abençoado por talentos musicais infinitos. Pois bem, a “rebeldia” não ficava só na letra. Dizem que eles usavam batom e se beijavam no palco também, mas há bem poucos registros sobre a época. A história da jovem e tórrida paixão por Seu Waldir, em seguida, ganhou a companhia de outras joias como “O Pirata”, “Dois Navegantes” (também registrada pelo conterrâneo Tagore) e “Três Margaridas” nos meus ouvidos. Reza a lenda que alguns pais trancavam suas filhas em casa para que não fossem aos shows dos caras.

Foto: Flora Negri/Divulgação

Cultuados e jamais esquecidos, servem de referência para gerações de conterrâneos, que também ficaram conhecidos por unir o rock com ritmos nordestinos. Vale lembrar que a já citada “Dois Navegantes” foi trilha sonora do premiado filme “Aquarius” (2016) e também integrou o mais recente “Rasga Coração” (2018), de Jorge Furtado.

Inicialmente, a banda se chamava Tamarineira Village – uma brincadeira com o Greenwich Village nova-iorquino. Ave Sangria veio de uma “cigana doida” que eles encontraram no interior da Paraíba, que os descreveu em um poema como “aves sangrias”. Pegou. Soou poético e nordestino. Passados 45 anos desde o lançamento desse LP, o grupo retorna, já em turnê, com um novo disco de inéditas batizado de Vendavais. Da formação original ficaram Marco Polo (voz e composições), Almir de Oliveira (voz, guitarra base e composições) e Paulo Rafael (guitarra solo e viola). Reunidos desde 2014, reviraram canções compostas entre 1969 e 1974. A eles se juntaram Juliano Holanda (baixo e backing vocal), Gilu Amaral (percussões) e Júnior do Jarro (bateria e backing vocal).

O disco

Depois de algumas audições intercaladas, fui arrebatado pela quarta faixa, a melhor do disco, “Dia a Dia”, com seus versos mântricos: “Quanta coisa foi preciso saber / Quanta coisa foi preciso aprender (…) / Dia a dia mais perto do amor”, revestidos de um imponente riff de guitarra concebido por Almir e Ivinho (integrante original falecido em 2015) e recriado por Paulo Rafael. A acústica “Marginal” poderia, muito bem, causar um desconforto nessa gente atrasada: “Por que nós somos tão inversos / Porque nós somos tão inversos / Eu sou o verso e tu és o reverso / (…) Eu sou tão carnal / Pois é, não tenhas medo / Eu sou um marginal”. Parece não haver momento melhor – feliz ou infelizmente – para lançar um trabalho como esse.

Última das 11 músicas, “Em Órbita” é a única já conhecida do público e é a colorida cobertura desse bolo produzido por Paulo Rafael e Juliano Holanda, com mixagem e masterização de Carlos Trilha, que também participa com seus sintetizadores.

Conhecidos entre os fãs como os Stones do sertão, na faixa-título fazem jus à pecha, com solos e coros no melhor estilo Wood/Richards. Seus versos falados, além disso, tem a contundência do rap, com um pé no repente: “Quebre tudo ao redor / toda forma e forma dos que dizem: Isso é melhor / Melhor é escolher / O que você quer ser / Mesmo que não seja / O aprovado pelo status quo / Lá no meio da sujeira / No lado do lodo escuro”.

Capa de Vendavais / Reprodução

Brigando contra o conservadorismo há mais de quatro décadas, o tom erótico volta em “Carícias”. “Quero ser teu namorado / A minha língua em tuas veias / Quero ver teu corpo armado / Meus lábios são luas cheias / Na noite mais verdadeira / Quero quebrar teus suspiros / Com carícias e maneiras / Que só conhecem os vampiros”. 

Já a faixa de abertura, “O Poeta”, é outra que chama a atenção, com seu natural pé na atualidade: “O poeta suicidou-se de repente / Deu um teco na ideia e já estava demente quando anunciou: Não te iludas mais, criança / Antes que tenhas tempo pra correr / Já estarás na pança de um aparelho de TV”. Talvez, se composta hoje, a televisão desse lugar às redes sociais e os sombrios tempos de fake news. Mas ainda bem que temos a psicodelia pernambucana da Ave Sangria que nos envolve de luz e distorção.

Avaliação: Ótimo

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