‘Divino amor’ é uma distopia perturbadora
Elogiado no Festival de Sundance, filme de Gabriel Mascaro retrata um Brasil dominado por preceitos evangélicos
Em um Brasil não tão distante, apenas daqui a oito anos, ospreceitos evangélicos vão ultrapassar barreiras e dominar diversos setores em nosso dia a dia, mesmo que, teoricamente, ainda estejamos em um país laico. Esse é o contexto do filme Divino amor, do diretor Gabriel Mascaro, lançado no fim de junho e elogiado durante o Festival de Sundance, um dos principais do mundo cinematográfico.
O longa narra a história de Joana (a cativante Dira Paes), uma mulher muito religiosa que trabalha como escrivã em um cartório. Ela recebe casais que querem se divorciar, mas, devota à ideia de um casamento eterno, tenta convencê-los a manter a relação. No entanto, ela também não fica imune aos problemas no próprio relacionamento.
Ao narrar a vida de Joana e de seu marido, Danilo (Júlio Machado), Divino amor faz severas críticas à nova “república evangélica” em diferentes camadas. Se você ainda não assistiu ao filme, pare por aqui. Abaixo, há alguns spoilers. Volte a ler a resenha completa quando ver o longa.
Com toques de Black Mirror, a distopia retrata uma sociedade mais tecnológica e sem privacidade, na qual equipamentos de segurança – na entrada de lojas, prédios, shopping, cartório – detectam e exibem publicamente informações sobre as pessoas, desde se elas são casadas ou divorciadas até se a mulher está grávida e se o feto já foi registrado.
Inclusive, gravidez é um dos pontos centrais da trama, já que Joana e Danilo querem a qualquer custo ter um filho. Além da fé, o casal apela até para a tecnologia: o marido fica nu de cabeça para baixo, enquanto uma máquina emite uma luz vermelha sobre ele. As cenas são cômicas a ponto de serem trágicas, pois mostram que os padrões sociais nos dominam e, mesmo que de forma indireta, somos obrigados a seguir um modelo de vida, como casar e ter filhos.
Para alcançar esse objetivo, Joana apela para conselhos de um pastor, que atende os fiéis (pasmem!) em um drive-thru de oração. No atendimento, as pessoas ficam dentro do próprio carro, enquanto ouvem o religioso, sentado do lado de fora, dizer frases de efeito, como “É só acreditar que as coisas acontecem”, “Você quer respostas e Deus lhe dá perguntas”.
O longa mostra como a religião é um alento para quem está passando por dificuldades, mas não deixam de fazer críticas claras à banalização e comercialização da fé. Ainda nessa perspectiva religiosa, destaca-se ainda o grupo Divino Amor, que recebe casais que tentam a reconciliação. Muitos deles são convidados pela própria Joana, no momento em que vão dar entrada no divórcio.
Mas não é um centro religioso qualquer. Nos encontros, os fiéis passam por atividades inusitadas, como dar banho um no outro, até sessões bem pesadas e sob o consentimento dos líderes religiosos, como sexo grupal entre os integrantes. Essas cenas retratam a hipocrisia de diversos grupos fundamentalistas, que, no mundo externo, pregam o conservadorismo, a moral e os “bons costumes”, mas, na prática, vivenciam outras atitudes.
Ao assistir Divino amor, é possível fazer uma relação com o atual governo brasileiro, marcado pelo conservadorismo. No entanto, o filme foi produzido antes da posse de Jair Bolsonaro. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, Gabriel Mascaro conta que o contexto do longa foi alterado com o tempo.
“Muita coisa foi mudando, e a intenção inicial – refletir sobre o corpo controlado pelo Estado -, foi ganhando uma outra dimensão, por causa da religião que começou a intervir no processo político brasileiro”, analisou o diretor. Mesmo que a intenção inicial tenha sido outra, Divino amor entrou em cartaz no timing perfeito, com discussões pertinentes para a nossa sociedade. Vale assistir.
Avaliação: Ótimo