‘Anima’: Os sonhos de Thom Yorke em música e vídeo
Vocalista do Radiohead faz melhor álbum solo e tem a ajuda de PTA em curta onírico
Thom Yorke tem uma carreira prolífica. Aos 50 anos, o vocalista/guitarrista/pianista do Radiohead, uma das maiores bandas de todos os tempos, não para. Quando não está gestando discos com o grupo, Yorke faz trilhas sonoras (do remake do filme Suspiria), é DJ em eventos variados ou escreve peças de piano para exposições. Em 2006 lançou ‘The Eraser‘, um mergulho nos temas que lhe são caros: paranoia, a tecnologia como malefício nas relações humanas, o apocalipse social que nos cerca. A sequência com ‘Tomorrow Modern Boxes‘ (2014) mostrou o músico evoluindo neste território e indo fundo na sua paixão pela música eletrônica. Cinco anos depois, Yorke quer… sonhar.
‘ANIMA’, parceria com o produtor Nigel Godrich, considerado o sexto homem do Radiohead, mostra o artista explorando o território dos sonhos, outra obsessão particular. Baseado no conceito de mesmo nome de Carl Jung, Yorke entrega em nove faixas seu melhor e mais coeso trabalho solo. As letras seguem enigmáticas como sempre no padrão usual do vocalista, mas há pistas em pontos específicos nessa intensa atmosfera de sonho. Há as velhas reflexões sobre como nos afastamos uns dos outros à medida que as formas de comunicação vão evoluindo, a crítica mordaz a governos autoritários disfarçados de democracia, o humor ácido que pode ser autoreferente e demolidor ao mesmo tempo e, claro, a dor da perda do ser amado.
Musicalmente, o álbum é essencialmente eletrônico, mas há espaço para texturas de guitarras geralmente escondidas (que evocam a fase Kid A/Amnesiac), orquestrações dramáticas e pontuais semelhantes ao último disco do Radiohead e a cozinha da outra banda de Yorke, Atoms for Peace, com suingue calçado no afrobeat e um pezinho no jazz. Yorke revelou que as canções foram feitas em processo colaborativo: ele enviava rascunhos de arranjos das cordas e sintetizadores e beats/loops para Godrich, que os devolvia já prontos para receber as letras.
‘Anima’ é claramente dividido em três partes, sendo ‘Dawn Chorus‘ a peça principal, depois das três primeiras faixas e antecedendo as cinco restantes. É um um bom exercício enxergar o disco nesse prisma, porque Chorus é o grande destaque da obra, uma das mais belas músicas escritas por Thom Yorke e esperada pelos fãs desde 2016, quando foi criada uma empresa de nome semelhante para promover A Moon Shaped Pool e a faixa foi tocada em passagens de som. Quando se trata desses ingleses, nada é à toa e os mais pacientes sempre são recompensados. Dito isto, o disco tem outras ótimas surpresas.
Tudo começa com ‘Traffic’, com seus quatro acordes circulares e a batida dançante em um emaranhado de timbres – a intenção é reproduzir mesmo o tráfego numa grande cidade. Ao fundo, Yorke dá ao seu melhor no falsete que o colocou como uma das vozes mais reconhecidas do rock. “Mas você tem que fazer consertos”, parece alertar. ‘Last Time I Heard ( ..He Was Circle the Drain)‘ é mais melódica e experimental, é perfeitamente possível caçar camadas de elementos eletrônicos que permeiam a canção. ‘Twist’, como o nome sugere, aposta na reviravolta estrutural. As batidas que lembram a produção eletrônica dos anos 90 que fortemente influenciaram o artista dão lugar a uma timbragem sinistra do meio pro fim. Tal qual um cineasta de horror, Thom descreve um pesadelo: ‘um garoto em um carro na floresta/o motor parou de funcionar’.
Então, temos ‘Dawn Chorus‘, uma das músicas do ano. Espécie de prima de ‘Daydreaming‘ na temática,, a canção fala sobre um amor perdido. Neste caso, Yorke canta para a ex-esposa Rachel Owen, de quem se separou amigavelmente em 2015, falecida em 2016 em decorrência de um câncer. ‘Tenho a sensação que perdi algo/mas não tenho certeza do que…”, lamenta e repente o mantra: “Se você pudesse fazer tudo de novo”. Logo após, o humor aparece em ‘I Am a Very Rude Person‘, que mostra um baixo pulsante e versa sobre acabar com a festa de um DJ quebrando sua mesa.
‘Not the News‘ dá um alô para a mistura de guitarras e eletrônica sob cama de um metrônomo. ‘The Axe‘, calçada no afrobeat também traz surpresas com uma rica orquestração ao fundo, enquanto Yorke ameaça ‘fisicamente’ os computadores, seus algozes desde sempre. ‘Impossible Knots‘, já tocada pelo Radiohead, traz o baterista da banda em uma levada frenética, que deve se tornar uma das favoritas em apresentações ao vivo. Ao fim, uma guitarra tuaregue da o tom de ‘Runwayaway‘, que distorce a voz do artista em várias matizes, enquanto ele repete “é assim que você sabe quem são seus verdadeiros amigos”. Não se sabe se há esperança ou medo na canção, mas ao mesmo tempo há isso e muito mais.
‘Anima‘, o disco, cresce a cada audição e aponta caminhos interessantes e desconhecidos para seu autor. O reino dos sonhos, afinal, pode ser tão acolhedor quanto traiçoeiro.
Avaliação: Ótimo
Anima – Direção: Paul Thomas Anderson
Paul Thomas Anderson, um dos maiores cineastas da atualidade é velho conhecido de pelo menos um membro do Radiohead. O guitarrista Johnny Greenwood assinou a trilha do clássico ‘Sangue Negro‘ (2007), Vício Inerente (2014) e do espetacular Trama Fantasma, do ano passado. Em 2017, PTA assinou estes três belos clipes com a banda e também se tornou bom amigo de Yorke.
Para o curta de ANIMA, em cartaz na Netflix, o diretor convocou Yorke, a atriz italiana Dajana Roncione, atual parceira do cantor, e uma trupe ser dançarinos para filmagens na França e na República Tcheca. Escudado pelas músicas ‘Not The News‘, ‘Traffic‘ e ‘Dawn Chorus‘ (de novo o ponto central), o filme mostra o artista em uma coreografia frenética no metrô, em uma parede surrealista e pelas ruas escuras e belas de Praga com Dajana, em um abraço amoroso e…sonhador.
Com bela fotografia e significados marcantes, marca de PTA, o curta é a melhor produção visual de Thom Yorke. Não é memorável, mas belo, um pouco assustador e confortante. Como acordar de um sonho bonito.
Avaliação: Ótimo