Gota D’Água {Preta} renova tragédia e é um dos grandes espetáculos do ano
Releitura com Juçara Marçal atualiza clássico de Chico Buarque e Paulo Pontes trazendo à tona questões raciais e de gênero
Era o último dia da curtíssima temporada de Gota D’Água {Preta}. Domingo, à tarde, Centro do Rio. Do lado de fora do Sesc Ginástico, o público majoritariamente preto não escondia a ansiedade de conferir o já elogiado espetáculo dirigido por Jé Oliveira, uma releitura da obra de Chico Buarque e Paulo Pontes.
Com uma das grandes cantoras de sua geração no elenco, Juçara Marçal, a nova montagem é disruptiva, promovendo um distanciamento da tragédia grega originária – Medeia, de Eurípedes – e se aproximando da tragédia brasileira: a desigualdade. Aqui, Oliveira, que vive Jasão, destrincha o texto de 1975, que sempre trouxe personagens periféricos, e conjuga num elenco também majoritariamente preto.
Joana (Marçal), negra, pobre, umbandista, com dois filhos pequenos, está prestes a ser despejada do conjunto habitacional onde mora. Jasão, por outro lado, é seu ex-marido sambista, que alcançou o sucesso mercadológico com a música-título, deixou-a por Alma, mais jovem e menos retinta, filha de Creonte (Rodrigo Mercadante), homem branco, bem parecido com um típico e populista miliciano, mestre na extorsão dos moradores em valores impraticáveis para a compra dos imóveis.
Ao se deslocar da pegada de musical e direcionar para a crônica racial, o espetáculo expõe feridas abertas e sutilezas. Entram aí a solidão da mulher negra, a sororidade – as vizinhas, comadres de Joana em mútuo suporte –, as aspirações de Jasão pela ascensão social por meio do capital e do “embranquecimento”, entre outras nuances.
Outra perspectiva oferecida pelo diretor é o também protagonismo de Jasão, que outrora era exclusividade de Joana. Em meio a memoráveis cenas, um destaque especial para a clássica em que ela lhe diz:
“Te conheci moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo
não conhecia nada de mulher nem de samba.
e tinha um puta dum medo de olhar pro mundo
As marcas do homem, uma a uma, Jasão, tu tirou todas de mim”.
Mais escassa em repertório, a música, em si, também se renova. Diferente da penúltima montagem que passou pelo RJ, em que se privilegiava o canto, aqui entram a percussão, o funk, o alabê, samples dos Racionais MC’s e até um ponto musicado por Juçara se encontram com a erudição e traduzem em ritmos a originalidade da peça. Sem contar os versos entoados na abertura, já eternizados por Elza Soares: A carne mais barata do mercado é a carne negra.
Curiosamente, este que vos escreve, ouviu, no intervalo, relato de uma espectadora de que não estava entendendo nada e que não tinha ninguém para explicar. Ela clamava pela presença de um locutor e estava odiando tudo. Para esses casos, nem desenhando – tentativas não faltaram.
A adaptação é, na medida do possível, bem humorada e a periferia, bem representada. A gira, a roda de capoeira, a intolerância religiosa, está tudo lá. O personagem Egeu é vivido por Salloma Salomão, que não é ator, mas professor de História. Dele, vem profundas serenas lições sobre racismo estrutural. Aliás, o elenco é praticamente irretocável.
O mântrico desfecho ainda arregaça um exercício de consciência. Os que se comovem com as tensões na América Latina ou fictícios – como em Bacurau – rapidamente se encontram neste espetáculo, em que é reforçado o enorme – e subestimado – poder dos movimentos populares. Ah, se o povo se organizasse!
Não à toa, Gota D’Água {Preta} concorre ao Prêmio APCA nas categorias melhor espetáculo e direção. Merece tudo, como os efusivos, emocionados e longos aplausos, que dividiram espaço com o “Parabéns pra você” ao presidente Lula, que completava 74 anos naquele dia.
Elenco: Aysha Nascimento, Dani Nega, Ícaro Rodrigues, Jé Oliveira, Juçara Marçal, Marina Esteves, Mateus Sousa, Rodrigo Mercadante e Salloma Salomão
Avaliação: Ótimo
PS: Volta logo ao Rio; muito mais gente merece ver e se inspirar, para se manter “de aço nos anos de chumbo”.
*Foto de capa: Evandro Macedo/Divulgação