Love e a importância de seguir em frente

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Love, série da Netflix com três temporadas, fez  sucesso e conseguiu boas avaliações nos Estados Unidos, reverberando em diversos países, como o Brasil. Com uma pegada realista entrelaçada a momentos cômicos, a série terminou neste mês, deixando fãs com um gosto agridoce na boca. Durante 34 episódios, os espectadores acompanharam o relacionamento entre Gus (Paul Rust), um nerd introvertido, e a autodestrutiva Mickey (Gillian Jacobs). Produzida por Judd Apatow, conhecido por comédias como O Virgem de 40 anos e Superbad – É Hoje, Loveganhou certo destaque pela mistura nem sempre acertada de comédia-romântica e um pouco de drama. Ao mesmo tempo em que foi vista com bons olhos, a série também enfrentou acusações, a maioria delas de promover a misoginia na dinâmica do casal principal.

Sapoti Cultural conversou com uma psicóloga, uma jornalista e uma publicitária de história sobre os principais acontecimentos de Love. Elas analisaram o show pelo prisma do amor e entretenimento. Se você ainda não terminou a série, um aviso: a entrevista e resenha contém muitos spoilers gerais e questionamentos sobre a última temporada.

Mickey é alcoólatra, viciada em sexo e amor. Gus tenta agradar a todos, mesmo à base de mentiras para ser aceito e ter medo de perder alguém. Nesse contexto, como definir essa relação, se é que é possível? 

Mayra de Castro, psicóloga: Lacan diz que “amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. Assim, a relação deles é a que conseguiram construir, apesar de tudo. Relação é a junção de desejos, medos, expectativas, histórias de vida, entre outras coisas, de duas ou mais pessoas que escolhem ficar juntas. Existem relações saudáveis, em que os sujeitos funcionam bem, tanto um com o outro, quanto para com a sociedade; e outras não tão saudáveis assim, em que os sujeitos podem não funcionar bem, nem um com outro, ou não funcionar bem em sociedade.

Bruna Motta, jornalista: Como em toda relação, há uma troca interessante entre eles. Claro que a série romantiza este encontro, mas ainda sim, mostra a dificuldade entre eles. Ela passou a vida aceitando relações abusivas por achar que merecia aquilo, por ter uma visão péssima de si mesma. O álcool era um enorme fuga. Já o Gus, também apresenta essa autoestima baixa, colocando uma máscara para encarar a vida. Ambos não se acham suficientes. A beleza deles fica nesse olhar que consegue ver no outro o que ninguém mais viu. Tiraram a fantasia de menina “rebelde sem causa” e o “cara bonzinho”. E se gostaram assim. Essa chance de se despir, metaforicamente, é o que acho mais bonito entre o Gus e a Mickey. A possibilidade de ser você mesmo e conseguir se sentir amado.

Natália Erre, publicitária: Acho a relação super possível porque ambos estão (parece) em uma busca quase desenfreada​ por caber em qualquer relação. Não é à toa que ambos estavam em uma shitty relationship antes. acho que é mais um desses casais que querem estar com alguém no matter what, sem se bastar como indivíduo antes de se comprometer com outra pessoa, sabe? Aí ambos fazem mil coisas terríveis um com o outro pelo simples fato de não se conhecer/aceitar plenamente. Sei lá, acho!

Durante a série, os personagens tomam algumas decisões que magoam uns aos outros, como esconder fatos importantes de relacionamentos anteriores que afetará a dinâmica do casal, traições, omissões…em que medida essas decisões são válidas ou inválidas nesse contexto?

Mayra: Acho que grande parte das decisões dos dois foram tomadas com o intuito de não magoar um ao outro, então a primeira impressão é de que parece ser uma decisão válida. Porém, o tempo vai passando, coisas novas acontecem. Para continuar preservando aquela primeira decisão, é preciso esconder mais e mais coisas. Isso acaba virando uma bola de neve e, para corrigir, é preciso contar muita coisa que estava escondida. Revelar tudo isso pode acabar magoando muito mais do que se não tivessem tomado a decisão inicial, que na época parecia acertada. Por isso, uma decisão pode parecer válida agora, mas será que futuramente ela continuará sendo?

Bruna: Assistir Love não é fácil. Você vê a autodestruição nos personagens o tempo inteiro. Ultrapassa a barreira de vergonha alheia, mas incomoda porque é totalmente familiar. Quem já não se viu omitindo algo ou mentindo numa tentativa de mudar a realidade? O Gus coloca tudo debaixo do tapete porque além de ser um traço da personalidade dele evitar confronto, ele não confia que se outra pessoa souber dos seus fracassos, ela vai querer continuar. O episódio do casamento na terceira temporada parecia um reality show de qualquer amigo ou até de nós mesmos. Acredito que ele tinha o direito de não compartilhar detalhes da relação anterior, é um direito dele. Mas o Gus quando esconde peças importantes do seu passado, ele fere a parte “amizade” da relação. Parece falta de confiança. Eu, Bruna, no lugar da Mickey, ficaria chateada por este ponto de vista. Por achar que um casal deve se sentir à vontade para falar sobre tudo, inclusive relações anteriores. Já o caso da Mickey é o mais grave. Ela se desculpou por ter tido uma recaída com o ex pela burocracia de “não tínhamos definido nada”. Mas ela não deu ao Gus a oportunidade de decidir se ele perdoaria. Se ele estava de acordo que ainda não existia esse compromisso. Ambos são covardes. É a história da autoestima, a falta de confiança.

Natália: ​Pra mim eles são um casal adolescente cometendo erros adolescentes​. quantas pessoas a gente não conhece que são assim a vida toda, né? mas é uma pena, gostaria de vê-los se desenvolvendo mais como pessoas. mas, respondendo, no contexto deles acho que essas decisões são totalmente válidas – uma pena.​

Ambos parecerem não querer perder um ao outro: Mickey por finalmente ter alguém que liga para ela apesar dos defeitos, ainda que de forma torta, e Gus por querer alguém que o ame por suas excentricidades. Um relacionamento que se pauta pela carência tem como dar certo?

Mayra: Um relacionamento pode começar por carência, mas para continuar é preciso resolver essa questão. Na primeira temporada, além da carência eles tinham uma atração grande, porém não conseguiam funcionar juntos. Durante a segunda e a terceira temporadas, perceberam que, para ficarem juntos, é preciso estar bem consigo mesmo para conseguir funcionar bem com o outro. Perceberam que se não amadurecessem, não iam conseguir ficar juntos, mesmo se quisessem muito.

Bruna: É ingênuo pensar que as relações, principalmente amorosas, são egocêntricas. Algumas mais, algumas menos. Mas você gosta da pessoa e gosta de COMO a pessoa te trata. De como ela faz você se sentir. No caso da Mickey, ela se surpreendeu com esse modo. Ser tratada com respeito, carinho e não vejo problema em ela ter se sentido confortável nisso. É saudável. O que preocupada é ela não gostar da pessoa Gus. Ela ser dependente deste modo em que ela é tratada por ele. Do amor dela por ele ser pelo cuidado. A linha é bem tênue, talvez ninguém saiba ao certo onde está o seu “gostar” da pessoa e o seu “gostar” da relação. Muitas vezes você gosta da pessoa, mas não há compatibilidade na maneira de se relacionar. E o contrário existe também. No caso do Gus, acho que ele é carente, mas se encantou pela espontaneidade da Mickey, algo que ele não consegue ter, a não ser em acessos de raivas. É tudo bem complexo, mas acredito que há um estímulo um no outro que acrescenta. Mesmo com esta alta dose de carência.

Natália: ​Primeiramente acho que ele só quer ficar com ela por ela ser super bonita. Já ela ainda tem aquilo de só ter arrumado caras que não se importam e tal. Dar certo? É relativo. O que é dar certo, né? Acho que eles já deram certo. Daí a ficar pro resto da vida, vai depender do amadurecimento de cada um. se eles se mantiverem assim a vida inteira talvez consigam. Mas acredito que a gente é muito mutável e – ainda bem (!!) – estamos sempre nos transformando. Sinceramente o que enxergo é ela ficando de saco muito cheio dele e ele virando cada vez mais um babão sem personalidade (já têm várias cenas assim! é uma tendência básica, pelo menos isso enxergaram). ​

A série sofreu críticas por dar mais ênfase ao personagem masculino, muitas vezes, flertando com a misoginia. Em dado momento, Mickey decide terminar com Gus, mas após ele revelar todas as suas mentiras em frente a familiares e parecer genuinamente que vai melhorar, ela o parabeniza pela coragem e o perdoa. Eles parecem te achado o gatilho do relacionamento, mas é claro que problemas continuarão. Esse tipo de dinâmica não seria, eventualmente, tóxica aos dois?

Mayra: A dinâmica tóxica parece ter chegado ao fim no momento em que Gus, como último recurso, despeja verdades de uma vida inteira para toda sua família, com Mickey assistindo a tudo atônita. Naquele momento, me parece que ela conseguiu enxergar o então namorado em sua verdade mais genuína. Por conta disso, volta atrás e o perdoa. Em seguida, me parece que juntos entendem que a dinâmica do relacionamento mudou para melhor e precisam falar a verdade um para o outro antes que os erros erros do passado se repitam. Não podemos saber se deu certo. Não consigo ligar essa situação à misoginia, apesar de perceber que em alguns momentos a série flerta sim com esse modus operandi. No começo da série, a Mickey é identificada como uma mulher fácil por querer sexo e estar sempre bêbada; essa estereotipagem é, realmente, classificável como misoginia.

Bruna: O Gus era um cara que fazia esperando em troca. Não era genuína essa doação. E engraçado, os outros personagens não me pareciam retratados de maneira positiva na série. O namorado da Bertie, o desempregado sem rumo com uma mulher que trabalha, dona do seu nariz. Ou o amigo da Mickey que apanhava da namorada. Não sei, não concordo que Love tenha dado ênfase no olhar masculino. Senti as mulheres na série bem mais emponderadas e adultas. Todos os amigos do Gus parecem adolescentes com trinta anos. E sobre o episódio na casa dos pais do Gus. A Mickey muitas vezes não se responsabiliza pelos seus atos. O fato do Gus não querer ter filhos ou ainda não se sentir seguro enquanto a isso por conta da sobriedade recente dela não me pareceu uma falta de apoio. Claro, ela se sentiu ofendida e disse algo muito certo: “Eu não posso te garantir sobriedade para sempre”. Ali fica claro: é um risco que ele precisa decidir se quer tomar. Ele não pode se relacionar com ela acreditando que vai mudá-la, ele precisa aceitar suas fraquezas. Neste ponto ela tem razão, mas achei também que faltou compreensão da parte dela. A hora em que o Gus fala para toda a família a mentira, foi uma prova de amor como a Mickey abandonar o álcool. O estímulo foi o outro, mas quem ganha com isso são eles mesmo. Ele por dar a cara a tapa e sair da sombra e ela por ganhar a sobriedade. Os dois se arriscaram a melhorar, pelo o outro, mas o maior beneficiado foram eles. Foi expurgar demônios. Acho ambos impulsivos demais. Acredito que antes dela ameaçar ir embora, poderia conversar com ele mais calma, em casa, para ele pensar sobre não mentir e se esconder em máscaras. Mas talvez se não fosse na “pressão”, ele não faria. Enfim, não gosto da frase “o fim justifica os meios”, mas nesse caso funcionou.

Natália: ​Tóxico acho muito forte, mas chato, sim. Atualmente os dois já são pessoas bem chatas então não vejo tanto problema. quero acreditar que daqui a dez anos ​eles vão estar um pouco menos infantilizados e saberão lidar com essas questões.

A série foi bem sucedida ao retratar relacionamentos? Por quê? 
Bruna: Bastante! Estamos acostumados com visões maniqueístas, onde há alguém que ferre o relacionamento sozinho. Neste caso, os dois erram, os dois tentam acertar, os dois erram de novo. É exatamente isso. A gente mente, esconde, tem defeito, fraquezas. E tudo isso foi retratado. A dificuldade de se relacionar, como passar por cima de defeitos seus e do outro. A série não trata a relação de forma superficial. Gus e Mickey trabalham a relação, vão construindo. E isso nunca é fácil. São duas pessoas trilhando um caminho, vai rolar atrito. No caso deles, os atritos são enormes “Big Bang”, mas eles renascem deles. É uma escolha de continuar. Por isso a série mexeu tanto comigo.

Natália: Retratar como não se relacionar, sim. desde amigos a um relacionamento amoroso. os personagens são muito foda-se, falta a parceria e a camaradagem que eu espero dos meus amigos. ​O casal então nem se fala. questões básicas de um relacionamento entre duas pessoas de até 15 anos. Mas tá ali né, entretenimento barato pra não te fazer pensar muito, tem seu valor.

Resenha – Love (3 temporadas – Disponível na Netflix)

A mistura de comédia-romântica e drama de Love conquistou audiências aqui e lá fora. Por 34 episódios, acompanhamos a relação entre Gus e Mickey, duas pessoas improváveis de se relacionar entre si — seus medos, angústias e, principalmente, erros são mostrados de forma quase sempre crua, realista. Tal abordagem tanto pode conquistar como afastar os espectadores. No meio do caminho, há Judd Apatow, conhecido por produções tão engraçadas quanto esquecíveis. O que sustenta Love são seus atores — Paul Rust e Gillian Jacobs são especialmente impecáveis em seus respectivos papeis — e diretores convidados que têm um olhar dedicado sobre as matizes que compõem a série.

Na temporada derradeira, a química entre o casal principal se aprofunda mais, ainda que o foco esteja em Gus e suas atitudes: muitas deles com potencial para jogar a relação no lixo. Os personagens secundários continuam dando um show à parte: foi uma sábia decisão dedicar um episódio inteiro à Berie (Claudia O’Doherty), facilmente a pessoa mais carismática da série e detentora de todas as cenas em que aparece. Iris Apatow também é ótima como uma estrela pré-adolescente em ascensão, muitas vezes mais madura que seu tutor.

A parte cômica de Love, quando funciona, rende bem e não carrega a herança do principal nome envolvido, mérito de Paul Rust e sua esposa, Leslie Arfin, que também cuidam do roteiro. Na história principal, Mickey ainda esconde sua traição e Gus comete muitas atitudes péssimas, se colocando na posição de vítima. O que parecia e deveria ser resolvido facilmente em dois episódios se arrasta quase até o fim, quando finalmente ele encontra sua redenção, não sem controvérsia. Mickey continua numa batalha contra seus vícios e seu companheiro de rádio, o terrível Dr. Greg, e felizmente toma posições de destaque na rádio em que trabalha — ela confrontou e venceu seu demônios.

Love apresenta um final não (tanto) convencional, embora quase sistemático. Há um recado tanto de esperança quanto prático: talvez seja melhor escolher o momento certo de terminar as coisas, seguir em frente e lembrar-se de tudo com carinho.

Avaliação: bom

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