‘Auto de Resistência’ retrata dor de mães que perderam filhos para a violência policial

 em cinema e tv, política

Mais que um grito por justiça contra as mortes, documentário traz uma crítica ao termo usado para camuflar assassinatos de inocentes, em sua maioria esmagadora negro e morador de favela

 

‘Auto de Resistência’ retrata a dor das mães e pais que perderam seus filhos pelas mãos de policiais no estado do Rio. Mais que um grito por justiça contra as mortes, traz uma crítica ao termo que dá título ao documentário, hoje chamado de morte decorrente de intervenção policial. A mudança de nome não afetou o modus operandi usado para camuflar assassinatos de inocentes, em sua maioria esmagadora negro e morador de favela. [trailer no final do texto]

O documentário, de Natasha Neri e Lula Carvalho, traz em detalhes o drama das famílias vitimadas pela violência policial, desde a perda, passando pelo processo de desconstrução da vítima, as vezes taxada como criminoso, o desgaste psicológico provocado pela perda e, claro, a luta por justiça dos parentes dos mortos. 

Auto de Resistência tem início com o choro deJorge Roberto, pai de Roberto dos Santos, o Betinho, de 17 anos, um dos cinco amigos — Wilton Esteves, de 20 anos; Carlos Eduardo Silva, 16; Wesley Castro, 25; e Cleiton Corrêa, 18 — que estavam num Fiat Palio branco fuzilado com 11 tiros por quatro policiais do 41º Batalhão de Polícia Militar no Morro da Lagartixa, em Costa Barros

Jorge Roberto, pai de Betinho, um dos cinco meninos vitimados na Chacina de Costa Barros, chora no enterro do filho | Reprodução

A chacina de Costa Barros, em novembro de 2015, ocupa boa parte do documentário, mostrando o enterro dos jovens, as audiências do processo, a liberdade temporária dos acusados, a reconstituição do crime e o depoimento de Márcia Ferreira de Oliveira.

Márcia foi ameaçada pelos policiais quando tentava socorrer seu filho Wilton após o massacre e viu um dos PMs forjar a cena do crime, colocando uma arma na mão de uma das vítimas e depois no chão, ao lado do carro. Ameaçada, a mulher tem forças para apontar os policiais e dar detalhes da fatídica noite.  

Mesmo estando presos, as famílias dos cinco de Costa Barros ainda sofrem com a falta de justiça, já que os policiais Antonio Carlos Gonçalves Filho, Thiago Resende Viana Barbosa, Marcio Darcy Alves dos Santos e Fabio Pizza Oliveira da Silva ainda não foram condenados pelos crimes.

A perda brutal de seus filhos é apenas o início do sofrimento dessas mães e pais. O desgaste psicológico faz novas vítimas, como a mãe de Betinho, Joselita de Souza, vitimada por uma depressão causada pela tristeza de perder o filho. 

Márcia, que perdeu o filho Wilton fuzilado, também viu Wilkerson, sobrevivente da chacina, morrer com um aneurisma cerebral. Escapar da chacina e ter visto irmão e amigos brutalmente assassinados transformou o jovem de 16 anos. 

Márcia, mãe de Wilton e Wilkerson, depõe contra policiais na Justiça: PMs até hoje não foram condenados | Reprodução

Um símbolo de força destacado no documentário é Ana Paula de Oliveira, mãe de Jonathan, 19 anos, morto com um tiro nas costas dado por um policial daUPP Manguinhos, em maio de 2014, quando ia deixar a namorada em casa. 

A potência de seu discurso emociona, ampara e traz força para outras mulheres que perderam seus filhos vitimados pela violência policial. “Minha luta é se juntar a outras mães, levando minha dor e buscando justiça”, discursa Ana Paula, que ainda espera por justiça para seu filho. 

O documentário homenageia Marielle Franco, executada em março de 2018 por milicianos, mostrando sua luta junto à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e em protestos contra a morte de jovens aos lado dessas famílias. 

Marielle Franco em protesto de mães de vítimas mortas pela polícia. Ao seu lado, Ana Paula, mãe de Jonathan, morto em Manguinhos | Reprodução

A morosidade dos processos contra policiais, que se arrastam por anos, também ganha ênfase do documentário, como os casos de Manguinhos e Costa Barros. “Não quero que aconteça comigo o que aconteceu com as Mães de Acari, que algumas morreram e não viram justiça ser feita”, diz Ana Paula. Com a demora, alguns crimes acabam prescrevendo e os culpados escapam da condenação.

Conforme mostra o filme, em 2015 foi aberta a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Autos de Resistência, logo após do flagrante de cinco PMs serem flagrados forjando a cena de um crime no Morro da Providência

Nas imagens, um policial coloca a pistola na mão de Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, já morto, e dispara duas vezes para simular uma troca de tiros. O jovem tinha envolvimento com o tráfico, mas moradores relatam que ele teria sido atingido quando já estava rendido e que não houve confronto.

Na época, houve aumento nas mortes ocorridas em ações policiais. Dados desde 2010 de óbitos provocados por agentes de segurança foram levantados, mas até hoje o relatório não foi votado em plenário. Em maio do ano passado, os cinco policiais militares daUPP Providência foram absolvidos do crime de fraude processual. A possível execução foi descartada e valeu a versão de troca de tiros. 

Diante do numerosos casos de morte de inocentes provocadas por policiais e mostrados no filme, Auto de Resistência dá um contraponto de um que a família viu a justiça ser feita. Alan de Souza Lima e Chauan Jambre Cesário, na época com 15 e 17 anos, respectivamente, brincavam com o flash do celular num dos acessos à Favela da Palmeirinha, em Honório Gurgel, quando um policial dentro de uma viatura disparou uma rajada de tiros contra eles.

A ação desastrosa e que explicita o despreparo do militar foi registrada pela câmera da viatura e também pelo celular de Alan, que era usado na brincadeira e filmou a morte do adolescente. Chauan sobreviveu e tem o projétil do fuzil alojado no lado esquerdo do peito. 

O trauma de ver o amigo morrer em seu colo dentro da viatura policial durante o socorro, ser preso em flagrante como “traficante” – ele ficou algemado no corredor do hospital enquanto aguardava atendimento  – além encarar seus algozes durante o processo na justiça, marcam a vida do rapaz até hoje. Ele ficou meses indiciado como um criminoso e o estigma de “suspeito” prejudicou sua carreira no futebol.

Chauan depõe contra policial que atirou com fuzil contra ele e seu amigo, Alan, que morreu em seu colo | Reprodução

O sargento Ricardo Wagner Gomes, lotado no 9º BPM (Rocha Miranda), responsável pelos disparos, foi condenado a 27 anos de prisão em dezembro de 2017 pela morte de Alan e a tentativa de homicídio de Chauan, além de fraude processual, pois apresentou armas à polícia e disse que o sobrevivente trocou tiros com a polícia. 

O filme também revisita a operação na Favela do Rola, em Santa Cruz, em 2013, que policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil, mataram cinco suspeitos, um deles desarmado, atirando do helicóptero da instituição. Os agentes foram investigados, mas acabaram absolvidos em 2017.

Agentes da Core atiram contra criminosos de helicóptero na Favela do Rola | Reprodução

O documento mostra a importância de pôr o assunto em debate, principalmente pela política de segurança pública do atual governador Wilson Witzel, que defende o uso de atirador de elite para “atirar na cabecinha” de quem estiver armado. A guerra às drogas aumentou consideravelmente o número de operações policiais em favelas, elevando inevitavelmente o número de mortes, seja criminosos ou inocentes.

O número de autos de resistência, conforme mostram dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), registrou um recorde no primeiro trimestre de 2019, com 434 mortes. A estatística neste período nunca foi tão alta desde 1998. Em sete meses (janeiro a julho), saltou 20% em relação a 2018. Somente em julho foram 194 mortes, maior número em um mês em 21 anos.  

Lançado em 2018, o filme está em exibição noCanal Curta, disponível em qualquer serviço de TV por assinatura. Auto de Resistência foi premiado em 2018 como melhor documentário no ‘É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários em 2018’.

Avaliação: Excelente

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