Alice Caymmi fala sobre novo disco e momento do Brasil: ‘Tudo colabora para as pessoas se sentirem um lixo’

 em música

Dona de interpretações intensas, cantora mostra preocupação com futuro do país, mas mantém a esperança: ‘a gente não pode se abater por pessoas que não conhecem o Brasil’

Neta de Dorival, Alice Caymmi se provou uma das vozes mais interessantes e potentes entre as cantoras de geração surgida no começo desta década. Com três discos na bagagem, a artista, que se notabilizou por interpretações realizadas com paixão e desenvoltura, lançou álbuns tão diversos quanto coesos artisticamente, reunindo um público amplo e igualmente interessado em seus trabalhos.

Com Electra (2019), Alice parece ter se despido de algumas convenções. Acompanhada apenas do pianista Itamar Assiere, ela interpreta músicas diversas — todas unidas pela temática que se debruça sobre vários contextos de repressão. No repertório, há desde Candeia (‘De qualquer maneira’) a Walter Franco (‘Me deixe mudo’), passando por uma obscura canção de Fagner (‘Fracassos’). O resultado são faixas intensas, que conquistam o ouvinte pouco a pouco. Em entrevista à Pitaya Cultural, Alice Caymmi falou sobre a origem do disco, detalhes das faixas, seu novo show no Teatro Riachuelo e como o Brasil de 2019 se espelha em seu trabalho.

Você tem uma discografia variada, a estreia tem coisas do seu avô, a sequência algo de experimentalismo e eletrônico e o terceiro é mais pop. Como surgiu a ideia para o Electra, que tem essa atmosfera muito crua?

Alice – Na verdade foi uma ideia meio maluca, que vai para outro lugar que não é o do segundo disco. Foi um esgotamento dos meus ouvidos quanto a sintetizadores ou ao que é produzido sinteticamente, como técnica e evolução do meu trabalho. E eu quis trazer outra face. Também me veio à cabeça que eu não tinha um disco que mostrava minha voz como algo completo, no sentido de não ter nenhum arranjo específico, de não ter algo potente em cima. Preferi que a voz aparecesse mais.

Sobre sua voz, você tem uma colocação potente e reconhecido domínio dela. Como foi esse processo de colocar a voz no disco?

Na verdade não foi nem um colocar voz, eu diria. Todo o processo foi fazer takes como se fossem ao vivo, sem edições. O processo todo foi muito rápido, durou dois dias. Fizemos assim para não interferir nos dois canais — voz e piano. A gente não teve que mexer em nada, não há cortes ou emendas em nenhum ponto, a mixagem e a masterização foram feitas com takes bem sucedidos e a escolha de interpretação e o approach, foi muito do que aprendi no teatro, as letras e músicas que gosto. Isso foi o mais importante.

Como foi esse processo para começar a fazer o ‘Electra’?

Eu estava conversando com o Zé Pedro (diretor artístico) e ele disse: ‘Me dá um disco’. Ele não queria um álbum pop, ficava reclamando. Falei: ‘Te dou um disco totalmente cabeção’ e comecei a pensar que esse era disco. Esse processo foi muito mais importante para mim do que estou me deixando perceber. Tudo foi tomando uma proporção tão grande que se tornou meu trabalho do ano. Eu acho o Electra próximo do disco anterior (Alice, de 2018). Mudei tanto e minha vida mudou tanto, que nada mais justo que ir nesse fluxo para acompanhar todas as nuances.

Como se deu a escolha das músicas?

Fizemos algumas escolhas em sacolas. Eu vim com meu repertório, com minhas coisas, as minhas eram as mensagem que eu queria passar. O Zé trouxe ‘Diplomacia’ (Maysa), ‘Fracassos’ e ‘Me deixe mudo’ e eu vim com o restante. Em comum, vimos que essas músicas mais antigas, de um século de Brasil…todas eram da repressão, que diz algo sobre o zeitgest atual, de onde está minha cabeça e o que estou pensando agora.

Tratando dessas escolhas, há alguma música que você fez questão de manter no repertório?

(Taxativa) ‘Areia fina’ (do produtor/compositor Lucas Vasconcellos)! Essa é a única música que foge do padrão da história toda, e ao mesmo tempo dialoga com ela. Foi feita pelo Lucas, que é de uma geração um pouquinho anterior à minha e as demais foram feitas por gente muita cascuda, de um início de tudo no Brasil, de pilares da música. O Lucas é um rapaz e fez uma canção brilhante, que se encaixa perfeitamente num repertório só de medalhões. Eu sempre gostei muito e sempre valorizei essa canção.

Há alguma parceria prevista nesse sentido?

Com o Lucas? A gente já fez! Não fizemos um disco propriamente dito, quero dizer, mas a gente sempre conversou sobre e deu nosso jeito de estarmos juntos. É uma boa ideia, pode ser um projeto futuro.

Como serão os shows dessa turnê? Terá faixas de toda a carreira?

Ele passeia pela minha carreira, para contar essa história em três atos que também é minha. O show é dividido em Tragédia, Revolução e Futuro. As músicas aparecem como uma solução para esses atos, com tudo baseado no afeto e na empatia. Sim, também impossível caminhar por essa narrativa do que já foi feito, do que já foi cantado, do que o público gosta e conhece. Vou cantar músicas antigas e mesclar com essa produção mais nova.

O que você tem escutado atualmente?

Tenho ficado sem música, ultimamente. De vez em quando coloco um Queen, um Stevie Wonder…nada muito diferente disso.

As músicas desse disco são fortes e dão margem para diversas interpretações. Como você as relaciona com o contexto do Brasil atual, que deu uma guinada ao conservadorismo?

É uma luta, uma luta diária. Tudo colabora para que o artista se sinta um lixo, que o gay, o pobre e o negro se sintam um lixo. Há um desmonte cultural e econômico muito grande, uma retirada de dinheiro da cultura do Brasil, uma crise no mercado, mas tudo de fundo ideológico. Eu jamais imaginei que em 2019, aos 29 anos, fosse viver uma repressão tão aberta e tão descarada dento do mercado. Achava que isso nunca fosse acontecer.

Essa gente estranha, esquisita que está conseguindo desesperar a todos…mas não pode! A gente não pode deixar se abater por essas pessoas que não conhecem o Brasil, nem aos brasileiros e nem ninguém. São pessoas absolutamente focadas em outras histórias. Essa eleição que passamos foi um reflexo do homem moderno, do quanto ele é individualista. Elegemos uma pessoa vaidosa e ridícula. Fica a dica para a gente perceber para qual maluco estamos batendo palma. Eu não desvalorizo quem votou, não tiro da minha lista…mas acho que cada vez mais é um bom momento para a gente abrir os olhos sobre nossa situação.

Serviço – Alice Caymmi no Teatro Riachuelo

Quando: 09/07 – Terça-feira, às 19h

Onde: Teatro Riachuelo, Rua do Passeio, 38/40 – Centro

Ingressos: balcão R$ 50 | R$ 25 (meia); balcão nobre a R$ 60 | R$ 30 (meia); plateia a R$ 70 (inteira) | R$ 35 (meia); plateia VIP R$ 80 | R$ 40 (meia)

www.ingressorapido.com.br

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