Com ‘Ultra Mono’, IDLES convida à unidade em um mundo dividido
Banda de pós-hardcore faz seu disco mais pungente mirando políticas neoliberais, racismo, consentimento e seus odiadores
A foto que ilustra a postagem é de Tom Gallo
‘Você ouviu aquele trovão?/Esse é o som da força em números‘
Quando o vocalista do IDLES, Joe Talbot, grita o pré-refrão de ‘Grounds’, segunda faixa de Ultra Mono, os temas do terceiro disco da banda de pós-hardcore estão postos. Se a estreia com Brutalism (2017) revigorou o gênero e chamou a atenção pelas letras de Talbot, tão afiadas quanto engraçadas, e Joy as An Act of Resistance (2018) ajudou a consolidar o quinteto de Bristol nos holofotes ao entregar um conjunto mais refinado, apostando em temais mais espinhosos (a perda da filha recém-nascida de Talbot, masculinidade tóxica) e expondo vulnerabilidade sincera, Ultra Mono aposta principalmente na repetição e no peso para alçar o grupo a voos maiores enquanto desvela outros caminhos sonoros.
Aqui, a mira da banda é direcionada às políticas neoliberais, racismo, sexismo e consentimento, masculinidade tóxica, ansiedade e, com certa frequência nas 12 faixas, a seus odiadores. Com a ascensão do IDLES nos últimos dois anos, da apresentação em pequenos clubes ao prestigiado Mercury Prize, bandas que também cantam as mazelas da classe trabalhadora da Inglaterra como Sleaford Mods e Fat White Family deixaram claro seus sentimentos de desprezo até bem recentemente. É lógico constatar que cinco homens brancos cantando ‘negro é lindo’ seja parte do problema, não a solução. Também é possível reconhecer que a intenção, como um choroso Talbot mostra ao se emocionar com a plateia, é como discutir, ampliar e fortalecer laços.
A união e solidariedade, especialmente em tempos de pandemia da covid-19, podem parecer temas ingênuos e pueris, mas não totalmente perdidos ou desimportantes para o IDLES. Ultra Mono é sucinto do início ao final e a capa de Russell Oliver demonstra clareza do que representa o álbum: uma pedrada que busca atingir e convocar fãs e prováveis novos admiradores à mudança. Nesse sentido, Talbot e companhia despejam cânticos de guerra contra um mundo notadamente dividido e essa chamado passa por avaliações internas e externas, de quem somos e como nos relacionamos com um país, a Inglaterra e poderia ser o Brasil, que parece não nos representar mais.
‘War‘ começa os trabalhos à moda do quinteto, a dinâmica de começou-parou é circundada por uma cozinha potente, cortesia do baixista Adam Devonshire e do baterista Jon Beavis, e as guitarras de Mark Bowen e Lee Kiernan soam como uma sirene antes do bombardeio. Entre onomatopeias sobre uma espada entrando e um botão de drone sendo acionado, Joe Talbot faz seu manifesto anti-guerra com uma ferocidade singular, no que deve ser um dos grandes momentos das futuras apresentações da banda. ‘Grounds‘ ressoa a influência perceptível de Kanye West, e a mão do produtor de rap Kenny Beats é cirúrgica para construir a atmosfera ameaçadora da faixa. Os beats do gênero foram fundamentais para a sonoridade do disco e se refletem em toda instrumentação.
A divertida (e cansativa) ‘Mr. Motivator‘ é um recado aos odiadores de plantão, com uma melodia vocal que traz o humor do primeiro álbum de volta, mas derrapa em sua estrutura pouco convidativa. ‘Anxiety‘ realça os problemas causados pela ansiedade com um toque de humor, e infelizmente se dilui com uma letra fraca. As letras alias, compostas em maioria na cabine de gravação pelo vocalista, são em quase sua totalidade diretas e não permitem devaneios interpretativos. É uma faca de dois gumes, pois enquanto Talbot se permite ser mais sincero possível e ganhar pela verdade, os ouvintes de primeira viagem podem se cansar do estilo.
‘Kill Them With Kindness‘, com introdução do pianista de jazz-pop Jamie Cullum, emprega um riff circular em uma batida marcial, um dos grandes momentos de Ultra Mono, que sugere acabar com detratores usando a gentileza como arma. ‘Model Village‘ segue como uma divertida e ferina roda punk, que tira sarro em uma grande sacada de quem votou para o Reino Unido deixar a União Europeia no infame Brexit. O lado B começa com ‘Ne Touche Pas Moi‘, com participação de Jenny Beth, dos Savages, no refrão, versando sobre a importância do consentimento, ainda que de forma um tanto quanto primária.
‘Carcinogenic‘ bate na trave: sua dinâmica não é exatamente inovadora, mas vai fundo nas críticas ao capitalismo tardio, mostrando como jornadas extenuantes de trabalho e as formas que encontramos para lidar com nossas frustrações são destruidoras para nós mesmos. ‘Reigns‘, outra grande faixa’, mira a monarquia britânica e o conservadorismo questionando: ‘qual é a sensação de transformar as classes trabalhadoras em pó?’, enquanto um saxofone adorna o trator sonoro. ‘The Lover‘ se dedica novamente aos odiadores e por pouco não cai em didatismo bobo e autoparódia sobre o quanto Talbot tenta mostrar sua sinceridade ante seus críticos. Quem faz não precisa se justificar, afinal.
No fecho, ‘A Hymn‘ talvez seja a música mais vulnerável que o IDLES tenha gravado. De clima construído com guitarras esparsas, cheias de ambiência, à letra sem rodeios, tudo funciona. ‘Eu quero ser amado, todo mundo quer‘, sentencia Talbot, ao falar sobre arrependimento, luto e melancolia. O sucesso ou uma conta bancária gorda não são barreiras para as inseguranças que permeiam as atuais gerações. Homenageando Daniel Johnston, ‘Danke‘ encerra lá em cima lembrando Queens of the Stone Age em um instrumental criativo, para além das costumeiras influências como Fugazi e o próprio West.
Ultra Mono deve catapultar o IDLES para outras audiências, talvez dando munição para quem não gosta, mas enquanto o disco não supera seus predecessores, marca uma linha sonora que pode render frutos no futuro. Um dos grandes discos do ano.
Avaliação: Ótimo