Emicida potencializa canto em ‘AmarElo’ falando de amor, amizade e cotidiano, sem perder tom crítico

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Emicida lançou novo álbum, AmarElo, e mantém discurso forte, mesmo quando fala de amor, paz, amizade, cotidiano e de pequenos prazeres da vida

 

O zica voltou! Emicida lançou seu mais novo álbum, AmarElo, e prova que é possível ser crítico, com discurso forte, mesmo quando fala de amor, paz, amizade, cotidiano e de pequenos prazeres da vida. O título do disco se inspirou no poeta Paulo Leminski (“Amar é o elo entre o azul e o amarelo”). Sem grito, nem sempre com os beats pesados, mas com a influência de outros ritmos, assim como aconteceu no álbum anterior, Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa, de 2015.

Comecei escutando desconfiado AmarElo. Primeiro, fui tomado pela potência de Principia, faixa que abre o novo álbum. De arrepiar, chorar, discurso forte, o beat necessário para compor as letras carregadas de críticas e pregando a união entre negros. “Tudo que nós tem é nós”, diz o refrão de Emicida, acompanhado das Pastoras do Rosário. Pequenos gestos como um sorriso, um abraço, são exaltados pelo rapper. 

Cale o cansaço, refaça o laço
Ofereça um abraço quente
A música é só uma semente
Um sorriso ainda é a única língua que todos entende

A África é representada nos versos de Fabiana Cozza (“tudo que bate é tambor, todo tambor vem de lá”). A mensagem do sincretismo e respeito às religiões no lindo discurso do pastor Henrique Vieira, ao som dos ritmos das religiões de matriz africana, também emociona. No fim, o pedido de paz, mas “não aquela que se constrói com tiro”.

O repeat de Principia foi dando lugar a um olhar (ouvido) mais atento às outras faixas do álbum. O pé atrás inicial com a pouca presença das batidas do rap e a pegada mais pop, passando pelo samba, jazz,  trap, e outros ritmos, foi dando lugar a uma admiração do quão completo Emicida é como artista. É nessa mistura que mora a sua genialidade. 

O discurso forte do rapper está ali, na letra, mais cantada que gritada, de forma mansa, suave. É a mais pura potencialidade do discurso do rap, mas com leveza.

A Ordem Natural das Coisas narra o cotidiano do trabalhador de forma poética, com suas lutas e sonhos. “Dona Maria” é essa garra e força, que brilha antes do “astro rei”, o sol, que só vem depois que ela sai para trabalhar. A faixa conta com a participação de MC Tha.

Pequenos Alegrias da Vida Adulta vem como a ‘recompensa’ aos personagens da faixa anterior. Vibrar com as conquistas do dia a dia é um respiro diante da dureza da vida, prega a música de Emicida e Nave, carregada de groove e que ainda conta com o piano e a bossa de Marcos Valle.

“Triunfo hoje pra mim é o azul no boletim / Uma boa promoção de fraldas nessas drogarias / O faz me rir na hora extra vinda do serviço”, canta o rapper. No fim, uma história contada pelo comediante Thiago Ventura reforça o riso necessário para encarar as batalhas da vida. 

Quem tem um amigo (tem tudo) é uma linda celebração à amizade e reverencia o mestre Wilson das Neves, que escreveu a faixa junto com Emicida antes de ser vitimado por um câncer, em 2017. Conta com participação do gigante Zeca Pagodinho e a batida jazz e ska da Tokyo Ska Paradise Orchestra.

Paisagem segue na pegada pop que carrega grande parte do disco e mais uma vez os detalhes do cotidiano e a paz são pautas para Emicida. Cananéia, Iguape e Ilha Comprida aborda o amor, mesmo com a beleza e caos do mundo, mais uma vez registrando os triviais da vida. Começa com o rapper brincando com a filha pequena, trazendo a dualidade doçura e ‘marra’.

“Sem risadinha, certo? Sem risadinha, porque aqui é o rap, mano, onde o povo é brabo, entendeu?”, diz para a criança que brinca com um chocalho. A introdução dá lugar a um som pop com batida gostosa de se ouvir, produzida por Nave, grande parceiro do rapper no álbum. 

9vinha é a mais romântica, falando do amor adolescente, puro, das brigas da relação. Aborda os prazeres e dissabores do sexo sem clichê, tabu ou manual (“nossa primeira vez foi horrível, medo nos zóio, suor”). O refrão delicioso é cantado pela linda voz de Drik Barbosa

Ismália é a mais densa do disco de Emicida. Tendo como título o poema de Alphonsus de Guimarães, de 1923, aborda o país racista em que a cor da pele é o crime, onde inocentes são colocados em cadeias, pré-julgados mesmo sendo inocentes. Fica difícil sonhar nestas circunstâncias e as conquistas nem sempre representam ser respeitado.

Como a personagem do escritor simbolista, sonhar e voar podem representar a morte, como também aconteceu com o mito grego Ícaro, citado também na faixa. O poema de Alphonsus é recitado de forma potente por ninguém menos que Fernanda Montenegro

A introdução é feita pela voz rasgada de  Larissa Luz. “A felicidade do branco é plena/ A felicidade do preto é quase”, conclui os versos da cantora. 

A denúncia do racismo que condena e mata é escancarado em Ismália ao relembrar os 80 tiros de Guadalupe em direção do carro de Evaldo Rosa, morto ao ser confundido com criminosos, em abril deste ano. Um catador, que foi tentar ajudá-lo, também acabou baleado e morreu depois de ficar 11 dias internado. “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo”, canta Emicida. 

A chacina de Costa Barros também relembrada. Este mês completa quatro anos que cinco jovens negros foram executados dentro de um carro após saírem para comprar um lanche. Até hoje, os PMs que fuzilaram o Palio branco não foram condenados.  [Ontem finalmente foi marcado o júri popular de três dos quatro policiais, que começa hoje]

Um primeiro salário

Duas fardas policiais

Três no banco traseiro

Da cor dos quatro Racionais

Cinco vida interrompida

Moleques de ouro e bronze

Tiros e tiros e tiros

Os menino levou 111

Quem disparou usava farda (Ismália)

Quem te acusou nem lá num tava

É a desunião dos preto junto à visão sagaz

De quem tem tudo, menos cor, onde a cor importa demais

 

O álbum é completado por singles já lançados por Emicida:  AmarElo,  com Majur e Pabllo Vittar,  contando com um sample poderoso de  Sujeito de Sorte,  de Belchior [leia sobre o lançamento aqui];  Eminência parda, que junta trap com a paraense Dona Onete cantando trecho de “Canto dos Escravos”, além das participações de Jé Santiago e o português Papillon; e a retomada da parceria com o duo feminino franco-cubano Ibeyi, em  Libre.

Emicida mantém o passeio por outros ritmos e artistas em AmarElo, mas sem afinar o tom crítico contra as injustiças sociais e o racismo, marcas de sua trajetória musical no rap. Após quatro anos, o paulistano volta a fazer um grande álbum e mostra que dá para ser potente no discurso sem gritar, falando de amor, amenidades e com a voz bem entoada.  

Ouça o álbum completo clicando aqui!

Avaliação: Ótimo

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