O coco do Bezerra
Mestre do partido-alto, Bezerra da Silva já se intitulou “o rei do coco”
Antes de cantar a favela, a marginalidade e a maconha, o recifense José Bezerra da Silva, falecido em 2005, estudou violão clássico e, quando criança em Pernambuco, tocou zabumba e trompete. Mudou-se para o Rio na década de 1940, onde veio a trabalhar como pintor de paredes. Morando no Morro do Cantagalo, na Zona Sul, conheceu Doca, teve contato com o tamborim, as rodas de samba e o bloco Unidos do Cantagalo. Desempregado, chegou a morar por sete anos nas ruas.
A caminhada errante do intérprete de “Malandragem dá um tempo”, “Candidato caô-caô” e “Defunto caguete” teve como pontapé inicial o coco, seminal ritmo brasileiro. Um dos seus principais expoentes é figura fundamental nisso. A amizade entre Jackson do Pandeiro e o então Zé Bezerra rendeu dezenas de colaborações, como “Acorrentado” e seus versos “cantador, caísse no meu mundé”, e o baião “Leva Teu Jereré”, em que contava outra realidade um tanto distinta (jereré é uma espécie de rede de pesca, com um aro, para pegar peixes pequenos e crustáceos). Essas gravações, datadas de 1959, foram fundamentais para que Bezerra se entusiasmasse pelas próprias criações.
Uma dessas novas composições, citada em “Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo”, era “O Coco do B”, com uma letra desafiadora composta por diversas palavras iniciadas com a letra “b”. Conforme a biografia “Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo”, escrita por Fernando Moura e Antônio Vicente (Ed. 34, 2001), Zé visitava o parceiro com frequência na cobertura da rua Cândido Mendes, na Glória. A relação estremeceu em 1965, quando Almira, mulher de Jackson, disse que seu marido “devia parar de gravar compositor pobre”. O amigo ainda tentou contornar, dizendo que “só quem sabe fazer música bonita são os pobres”, mas não foi o suficiente: Zé só voltou a frequentar o apartamento depois da separação do casal. Nesse meio tempo, veio também o primeiro samba de Bezerra, “Verdadeiro amor”, gravado pelo paraibano em 1967.
Já o primeiro disco veio apenas em 1973 e fora gravado três anos antes: “O Rei do Coco”, com direção artística do próprio Jackson do Pandeiro, que o ajudou a escolher o repertório, convidou a família como instrumentistas e vocais e ainda tocou pandeiro, ganzá, reco-reco e bongô. A faixa-título mostrava a que vinha: “Não é banca, nem vaidade / É pura realidade / O rei do coco chegou”. E aquele mesmo “Coco do B” também voltaria à cena como uma das 12 faixas. O “Volume 2” saiu em 1976 e contava com uma parceria com o notável Dicró em “Cara de Boi”, além de “Vamos S’imbora, Neném”, do conterrâneo Avarese, esse radicado em Madureira. O selo Discobertas reeditou em 2011 os álbuns em CD.
Depois disso, integrou como percussionista a orquestra da Rede Globo, o que permitiu deixar de lado a construção civil em 1977, mesmo ano em que lançou o primeiro disco de samba, “Genaro e Bezerra da Silva Partido Alto Nota 10”, iniciando uma reluzente carreira de intérprete. Passando por dezenas de detenções para “averiguação”, denunciadas em composições como “Preconceito de cor” (“A lei só é implacável pra nós favelados / E protege o golpista / Ele tinha que ser o primeiro da lista / Se liga nessa doutor”), o resto é história: ganhou 11 discos de ouro, 3 de platina e 1 de platina duplo, dando voz a compositores pobres como 1000tinho, Barbeirinho do Jacaré, Wilson Saravá, Dunga da Coroa e Embratel do Pandeiro.