O prato, a faca e os ingredientes desconhecidos
Publicação em revista especializada criou polêmica ao demonstrar desconhecimento
Finalmente, Caetano fez a aguardada “live da quarentena”, no dia de seu aniversário de 78 anos (7), acompanhado pelos filhos Moreno, Zeca eTom Veloso, tal como a turnê “Ofertório”.
Ainda que o repertório tenha sido diferente do show e a transmissão tenha sido sublime, foi a cobertura realizada pela revista Rolling Stone Brasil – e pela Folha de S.Paulo, em menor escala – que acabou ganhando as redes sociais.
Em nota, a revista incensava Moreno pelo “improviso” ao tocar “Pardo”, canção de seu pai gravada por Céu, usando “prato e talher pra fazer o som”. O episódio é citado como “inusitado” e “cômico”. Moreno tem, de fato, muitos méritos como artista, mas cômica é a ignorância. Folha, na mesma linha, destaca “estilo caseiro”, lembrando que ele acompanhou o pai novamente com “prato e talher” no clássico “Reconvexo”. A turnê de enorme sucesso que reuniu Caetano e os filhos no palco tem registro disponibilizado gratuitamente no YouTube, e essa última faixa citada por Folha já ultrapassa a marca de um milhão de visualizações. Lá estão o contrabaixo, dois violões e, adivinhem, prato-e-faca.
É duro que um veículo cobrindo evento de um artista nascido no Recôncavo Baiano ignore o prato-e-faca como instrumento tradicional do samba, talvez o gênero musical mais brasileiro que há – incluindo suas diversas variações. É icônico, é representativo, tal como Dona Edith do Prato, que carrega a História do instrumento em seu nome e que, como lembra o colega GG Albuquerque em excelente texto de seu site Volume Morto, era tão próxima dos Veloso que o amamentou quando Dona Canô ficou doente. A mesma abre abre o disco Araçá Azul (1972), do mesmo Caetano, cantando “Viola, Meu Bem”.
VEJA MAIS
Mesmo o samba carioca, mais exposto midiaticamente, tem no mesmo instrumento referências seminais, incorporado do samba-de-roda do Recôncavo. Como lembra o historiador Luiz Antonio Simas, o Almirante, outra fundamental figura, já pedia “raspa esse prato, João da Baiana” em “Patrão prenda seu gado”, parceria dos dois com Pixinguinha. João, que hoje dá nome ao Largo na mesma Zona Portuária carioca onde chegavam navios cheios de negros escravizados, foi um dos principais ritmistas a difundir o prato-e-faca, numa prática que resiste até os dias atuais, seja na Bahia, seja no Rio.
Ao tomar conhecimento das notas da imprensa, Caetano reagiu como “uma maluquice e ignorância inacreditáveis”. Não é preciso ser um especialista em chula-raiada, mas se quiser, pode. É urgente preservar a memória, inclusive, para combater o racismo e outras formas de opressão. Diferente do que fez Cabral, precisa-se “descobrir o Brasil” com sensação de pertencimento ao país, conhecer sua morada para descrevê-la, crítica e afetuosamente, sem ignorar suas bases de sustentação. Se não, corre o risco de um outro texto apócrifo descobrir a caixa de fósforos.