Arrastão de Paulo Freire
Patrono da Educação Brasileira completaria 98 anos e respeitado em todo o mundo, seu trabalho nunca esteve sob tantos ataques no Brasil
Morto há 22 anos, o educador e filósofo pernambucano Paulo Freire faria aniversário neste 19 de setembro e segue como o pensador brasileiro mais citado em estudos acadêmicos pelo mundo. Oficialmente Patrono da Educação Brasileira desde 2012, em lei sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, seu legado está sob constante ameaça. O presidente Jair Bolsonaro disse, em entrevista a uma repórter-mirim durante a feira de negócios Agrishow, que aconteceu em Ribeirão Preto (SP), entre abril e maio deste ano, que isso “seria mudado” e que Freire era “muito chato”.
Dono de pelo menos 35 títulos de Doutor Honoris Causa em universidades europeias e americanas, Freire foi o brasileiro mais homenageado da história. O autor de “Pedagogia do Oprimido” é a maior referência nacional na educação popular, tendo influenciado o que conhecemos hoje como pedagogia crítica. O teórico, de acordo com a ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica Google Scholar, é o terceiro colocado em citações em trabalhos acadêmicos na área de humanidades, atrás apenas do filósofo Thomas Kuhn e do sociólogo Everett Rogers. Em sua trajetória, Paulo Freire defendeu a disponibilidade de diálogo e a necessidade da escuta.
Já o ministro da Educação do governo Bolsonaro, Abraham Weintraub, segue empenhado a seguir as ordens do chefe de “mudar isso daí” – ambos demonstram notável incapacidade de diálogo. A despeito de um mural com a imagem de Freire diante do prédio do MEC, Weintraub lançou na rede: “é ou não é feio de doer?”. Trata-se de um mosaico, com pedaços de mármore e granito, feito pelo artista plástico Henrique Gougon, e que contém quase mil assinaturas de adultos recém-alfabetizados à época da inauguração, em dezembro de 2003. No programa “Morning Show”, da rádio Jovem Pan, que foi ao ar em 1º de agosto, o ministro disse que “se Paulo Freire fosse tão bom, teria ao menos mais um país usando método dele”.
Mural em frente ao MEC…É ou não é feio de doer? pic.twitter.com/7m3R0W85Rr
— Abraham Weintraub (@AbrahamWeint) August 1, 2019
Em alguns segundos de pesquisa no Google, entretanto, é possível “descobrir” que seu método vem sendo sistematicamente aplicado ao redor do mundo. Na Alemanha, por exemplo, é usado para a integração de refugiados, além de dar nome a um instituto e inspirar diversos projetos. O professor Heinz-Peter Gerhardt, que conviveu com o brasileiro e é doutor em Educação pela Universidade de Frankfurt e professor visitante da Universidade Católica de Macao, na China, disse que ele “é visto como um dos grandes nomes da pedagogia, ao lado de Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau, Rudolf Steiner e Maria Montessori”. Não só entre os germânicos, há centros de estudos batizados com o nome de Freire na África do Sul, Áustria, Holanda, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá. Há até um monumento em sua homenagem na capital sueca, ao lado de figuras históricas da época (1971 a 1976).
Seu método, no entanto, é questionado no país por uma aquarela monocromática de motivos. O principal deles é por que os resultados da Educação brasileira são tão ruins, quando comparados a outros países. Ora, o método, em si, nunca foi amplamente implementado como política pública para as escolas brasileiras – Freire esteve à frente apenas da Secretaria Municipal de Educação na gestão Luiza Erundina, em São Paulo (1989-1992). A abordagem até chegou a ser adotada pelo governo João Goulart, quando houve um esforço nesse sentido para alfabetizar adultos, mas o educador logo foi perseguido pela ditadura civil-militar que eclodiu em seguida – período em que esteve preso por 70 dias e exilado na Bolívia e no Chile. Depois da publicação de “Pedagogia do Oprimido”, no fatídico 1968, Freire foi convidado como professor visitante pela Universidade Harvard – a mesma instituição que alguns de seus detratores insistem em mentir no currículo sobre terem estudado.
O pedagogo pensava a educação como ato político. Talvez por isso seja acusado de doutrinador e execrado pelo movimento “Escola Sem Partido”, que tem sofrido derrotas consecutivas em casas legislativas país adentro. Tal movimento, na verdade, condena o pensamento crítico e a diversidade de ideias – o oposto do que propunha Freire. Para ele, “os oprimidos devem ser o seu próprio exemplo na luta pela sua redenção”. Em sua teoria, estudar não era apenas para consumir ideias, mas a possibilidade de criá-las e recriá-las. Defendia, também, que “aqueles que autenticamente se comprometem com o povo devem reexaminar-se constantemente”. Mesmo assim, vê-se uma ameaçadora crise de consciência coletiva.
Quem soube interpretar, com a maestria de sempre, o que tem acontecido por aqui foi o baiano Tom Zé, o que em sua canção “Esquerda, Grana e Direita” (2014), descreve como “Arrastão de Paulo Freire”: “Quando o trabalhador cresce na sociedade e tem a oportunidade de ser protagonista da história, ele pratica o método do opressor porque foi o único método que aprendeu. Então, ele só sabe agir como o opressor”. Isso, segundo Freire, acontece quando a Educação não é libertadora. Entendeu?