Os significados da letra de ‘Boca de Lobo’, de Criolo
Rapper volta às origens para expor um retrato do Brasil atual, onde reina o terror, fascismo, racismo, corrupção e outros males. ‘Boca de Lobo’ é um caldeirão de referências e recados diretos, um convite à reflexão antes que seja tarde demais. Ou talvez já seja
O clipe do novo single de Criolo já foi brilhantemente dissecado em outros sites de música, então Pitaya Cultural fará observações sobre a ótima letra do rapper que também casa com a produção. No vídeo, há referências sobre o menino sobrevivente da guerra na Síria, corrupção (episódios do trensalão, entrega das riquezas nacionais, caos na saúde), figuras oportunistas (uma certa advogada, um certo candidato à presidência que usa a religião como mote), de resistência (Marielle Franco) e animais que representam figurativa ou literalmente personagens da política.
A intenção de Pitaya Cultural é propor algumas reflexões sobre a obra, lembrando que toda interpretação para um objeto de arte é subjetiva. Para começar, ‘Boca de Lobo’ é também a tampa de proteção de bueiros comumente encontrada nos meios-fios das calçadas, que serve para escoar a água da chuva aos esgotos. Mais direto, impossível. Vamos à letra, por partes.
‘Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu‘
A citação do grande poeta Waly Salomão serve para nossos tempos: com as redes sociais (também) acabaram as máscaras. E são máscaras variadas. Há muita gente por aí cheia de ódio e preconceitos absurdos, que detesta e rejeita minorias. Ou minorias que caem no jogo de poder. Criolo demarca: é uma realidade dura a convivência com essas pessoas.
Aonde a pele preta possa incomodar
Um litro de Pinho Sol pra um preto rodar
Pegar tuberculose na cadeia faz chorar
Que a lei dá um exemplo
Mais um preto pra matar
Nesses versos, o rapper escancara o caso Rafael Braga: negro, pobre e favelado, foi o primeiro condenado por conta das manifestações de junho de 2013. À época, Braga foi preso por estar com um litro de Pinho Sol na mochila, pegou tuberculose e, após ser solto, foi preso novamente em um outro episódio de abuso de direitos humanos. Criolo escancara o pensamento latente no país: se o negro incomoda, deve morrer. Cabe aí também o caso Marielle e o do professor morto com 12 facadas por dizer que votou no PT no primeiro turno, entre outros.
Colei num mercadinho dum bairro que se diz pá
Só foi meu pai encostar pros radin tudin inflamar
Meu coroa é folgado das barra do Ceará
Tem um lirismo bom lá, louco pra trabaiar
Criolo conta um episódio familiar, ao entrar num mercadinho em SP, seu pai, nordestino, foi alvo de desconfiança de seguranças (os radin), mas não deixou barato. O músico também elogia a poesia do Nordeste e, possivelmente, dá um aceno para a cena do rap na região.
Num toque de tela, um mundo à sua mão
E no porão da alma, uma escada pra solidão
Via satélite, via satélite
15% é Google, o resto é deep web
Criolo fala da abrangência da internet, mas alerta para o quanto estamos sozinhos cada vez que nos embrenhamos mais e mais no mundo digital. Ele também alerta para a deep web: locais não mapeados da web em que crimes como venda de armas, drogas, prostituição, tráfico de órgãos e outros são comuns.
Na guerra do tráfico, perdendo vários ente
Plano de saúde de pobre, fi, é não ficar doente
Está por vir, um louco está por vir
Shimigami, deus da morte, um louco está por vir
Criolo ressalta os problemas das mortes relacionadas à guerra às drogas e da saúde pública, temas de frequente descaso de políticos de todas as áreas. O alerta sobre o deus da morte é uma referência clara a um certo candidato à Presidência que liderou o primeiro turno.
Véio, preto, cabelo crespo
Made in favela é aforismo pra respeito
Mondubim, Messejana, Grajaú, aqui é sem fama
Nos ensinamentos de Oxalá, isso é bacana
Criolo exalta comportamentos de autoafirmação do negro, mesmo que a vivência seja duríssima em qualquer lugar do Brasil, seja em Fortaleza ou São Paulo.
Na porta do cursinho, sim, docim de campana
LSD, me envolver, tem a manha
Diz que é contra o tráfico e adora todas as crianças
Só te vejo na biqueira, o ativista da semana
Aqui o rapper expõe a hipocrisia do traficante de classe média/rico e das elites em geral: se posicionam contra o tráfico e, de maneira geral, contra o crime, mas cometem as mesmas transgressões. Seja vendendo ou comprando drogas ou adotando outros crimes, como sonegação de imposto, falsificação de carteirinhas etc.
La La Land é o carai, SP é Glorialândia
Novo herói da Disney é Craquinho, da Cracolândia
Máfia é máfia e o argumento é mandar grana
Em pleno carnaval, fazer nevar em Copacabana
1 por rancor, 2 por dinheiro
3 por dinheiro, 4 por dinheiro
5 por ódio, 6 por desespero
7 pra quebrar a tua cabeça num bueiro
Enquanto isso a elite aplaude seus heróis
Pacote de Seven Boys
Criolo novamente aborda o problema das drogas em São Paulo, que vive uma epidemia de crack, e sobre o tráfico entre estados (cocaína no Rio de Janeiro), enquanto subverte o refrão de ‘1 por amor, 2 por dinheiro’ , dos Racionais MC’s. Ele sustenta: os crimes e desigualdaas são motivadas por dinheiro, primeiramente, e depois associados ao ódio e desespero, que culminam na anulação e extermínio do outro. E, claro, no meio tempo, a elite que ajuda a sustentar a ‘mudança para nada mudar’, aplaude seus heróis.
Nem Pablo Escobar, nem Pablo Neruda
Já faz tempo que São Paulo borda a morte na minha nuca
A pauta dessa mesa coroné manda anotar
Esse ano tem massacre pior que de Carajá
Nem o traficante mais famosos de todos os tempos, nem o poeta chileno mais conhecido. Criolo se vê ameaçado como negro antevê um massacre pior que o de Eldorado dos Carajás, onde 19 sem-terra foram mortos pela polícia.
Ponto 40 rasga aço de arrombar
Só não mata mais que a frieza do teu olhar
Feito rosa de sal topázio, és minha flecha de cravo
Um coração que cai rasgado nas duna do Ceará
Mais do que as armas, a indiferença, a falta de empatia e alteridade, o se colocar no lugar do outro é algo poderoso e triste. Na citação a Neruda, Criolo inverte os versos de ‘Amo-Te Sem Saber Como’. Talvez uma esperança pelo estado (ou Estado)?
Albert Camus, Dalai Lama
A nós ração humana, Spock, pinça vulcana
Clarice já disse, o verbo é falha e a discrepância
É que o diamante de Miami vem com sangue de Ruanda
Criolo cita o filósofo argelino, o monge tibetano, a escritora brasileira e o personagem de Star Trek e seu golpe icônico numa dicotomia entre medo e esperança, além de citar que o prazer das elites é fruto de trabalho do povo. Literalmente.
Poder economicon, cocaine no helicopteron
Salário de um professor: microscópicon
Papiro de papel próprio, letra com sangue no olho de Hórus
É que a industria da desgraça pro governo é um bom negócio
Aqui o rapper faz um jogo de palavras relembrando o caso do helicóptero apreendido com cocaína, cujo dono é um senador. O olho de Hórus, tradicional amuleto que representa poder e proteção, é ressignificado em nome da indústria da desgraça.
Vende mais remédio, vende mais consórcio
Vende até a mãe, dependendo do negócio
Montesquieu padece, lotearam a sua fé
Rap não é um prato onde cê estica o que cê quer
Na continuação direta, Criolo fala dos métodos do poder como venda. Quanto mais de loteia, mais se ganha, inclusive com a fé alheia. Mas salienta uma espécie de imunidade do rap nesta questão.
É a caspa do capeta, é o medo que alimenta a besta
Se três poder virar balcão, governo vira biqueira
Olhe, essa é a máquina de matar pobre
No Brasil, quem tem opinião, morre
Com o medo alimentando o crescente estado de terror e fascismo, o governo virando um balcão de negócios (e tráfico) e matando pobres e inocentes, chega-se à conclusão triste: quem tem opinião (Marielle, o professor de capoeira), morre.
La La Land é o caralho, SP é Glorialândia
Novo herói da Disney é Craquinho, da Cracolândia
Máfia é máfia e o argumento é mandar grana
Em pleno carnaval, fazer nevar em Copacabana
1 por rancor, 2 por dinheiro
3 por dinheiro, 4 por dinheiro
5 por ódio, 6 por desespero
7 pra quebrar a tua cabeça num bueiro
Enquanto isso a elite aplaude seus heróis
Pacote de Seven Boys