Crítica: ‘Sorte ou Revés’ acerta ao fazer espetáculo itinerante na agitada Joaquim Silva
Importância de “Sorte ou Revés” vai além do preciosismo da realidade que ‘deveria’ ser mostrada. Joaquim Silva ganha protagonismo em encenação que inova
Quando compartilhei a notícia de um espetáculo sobre a Rua Joaquim Silva, na Lapa, lugar onde cresci, li muitas coisas do tipo: ‘mas vai mostrar a história do fulano?’, ‘tem que ter a história de sicrano…’ ou ‘não sabem de nada’. Os recortes vistos na fábula podem decepcionar alguns, mas a importância de “Sorte ou Revés” vai além do preciosismo da realidade que “deveria” ser mostrada na narrativa.
“Sorte ou Revés” usa como cenário uma rua marginalizada, vista somente como um lugar de festa, boemia, abandonada pelo poder público, que ganha protagonismo em um espetáculo teatral que inova ao percorrer meio quilômetro de rua, dando voz a histórias pouco conhecidas pelo público, na visão do morador, o anônimo, mas citando também os populares, como Carmem Miranda e Madame Satã, por exemplo.
Mais do que dar voz a Joaquim Silva, “Sorte ou Revés” mostra através da micropolítica a importância do poder de uma comunidade que pensa coletivamente. A luta dos moradores na fábula é para realizar um bingo enquanto um ciclone se aproxima da cidade, além de tentar impedir que o prefeito imploda a escadaria Selarón para construir uma “escada rolante” .
Guias turísticos surgem para apresentar uma Lapa totalmente fora da realidade, aquela para “turista ver”, com até uma “praia” artificial. Enquanto isso, moradores sofrem com problemas “reais”, como esgoto a céu aberto, falta de lazer, entre outros que só quem vive na Joaquim Silva sabe.
“Trinta e seis!”, grita a voz de Dona Marlene, vinda de uma caixa de som do triciclo do locutor que acompanha o cortejo dos atores e moradores/espectadores que participam do espetáculo, dando início ao famoso bingo de cartela da Lapa. A longo da peça, outras pedras do famoso e antigo bingo da Joaquim Silva são cantadas, marcando cada cena, além de projetores com imagens ao longo da rua.
Ao pé da escada, após “promessas” do prefeito, Seu Cláudio, dono do boteco que teve uma das mais famosas rodas de samba da Lapa, é relembrado. Uma das “moradoras” que narra uma das fábulas baseadas em memórias do real fala até que Carmem Miranda não morreu em 1955, sendo, inclusive, a “patrocinadora” da arte a céu aberto de Jorge Selarón. Será?
Na garagem de um hotel, onde antes existia a vila de número 56, famosa por abrigar a Pequena Notável ainda adolescente, o grupo faz uma “reunião” e histórias que somente quem viveu ou é um amante do bairro das quatro letras sabe de sua existência. Lembra do aterrorizante caso do porteiro que concretou um aposentado em um prédio na Rua Taylor? Também é contado.
SAIBA MAIS: Memórias dos moradores da Joaquim Silva conduzem espetáculo itinerante
A montagem do grupo Peneira acerta em cheio ao fazer a sua “fabulação do território” em meio a movimentada e barulhenta Lapa do fim de semana. A condução das histórias misturada com música, vendedores com isopores de bebidas, barraquinhas, e gente, muita gente, obrigam o olhar a ficar mais atento, o que aumenta o fascínio pela narrativa. A mistura não poderia ser em outro lugar que não a eclética Joaquim Silva. Mais que destacar personagens, as situações narradas fazem o espectador/morador se identificar, se espelhar.
O som usado pelo locutor para marcar cada ato pode ser melhor, assim como a passagem de uma história para outra durante o espetáculo, que pode deixar perdido o espectador que tenha a mínima desatenção. Mas estou falando do primeiro dia, a estreia, que atrasou um pouco, e muita coisa ainda está se ajeitando. “Sorte ou Revés” tem tudo para ficar ainda melhor, mais azeitada, e se alguém ousar ir em todas as apresentações verá cada dia uma encenação diferente, por conta da efervescência da rua que a recebe.
Avaliação: Ótimo