BaianaSystem aprofunda raízes e busca novos rumos em ‘O futuro não demora’
Terceiro disco da banda soteropolitana mergulha na ancestralidade, reforça conexões e experimenta gêneros
Você provavelmente já ouviu falar do BaianaSystem. O grupo, formado por Russo Passapusso (voz), o líder Roberto Barreto (guitarra/guitarra baiana) e Seko Bass (baixo, bases eletrônicas) foi construindo um público fiel desde 2009, quando começaram os trabalhos em Salvador. De lá pra cá, a banda passou a lotar shows, levar milhares de foliões às ruas no Carnaval soteropolitano e emplacou um remix de O segundo Sol, hit de Nando Reis conhecido na voz de Cássia Eller, na novela da Globo de mesmo nome. Como resultado, a plateia se tornou cada vez mais diversificada e o lançamento de O futuro não demora, disponível nesta sexta-feira nas plataformas digitais, foi bastante aguardado.
A espera valeu. O trio volta com O futuro não demora, obra com direito a Lado A e B, e não repete a fórmula do consagrado Duas Cidades (2016), mas a atualiza. É um álbum dividido em partes, Água e Fogo, com forte carga política — desta vez o discurso é mais implícito, mas as mensagens sobre justiça social, desigualdade e a situação política do país (e outros da América Latina) estão lá e, por isso mesmo, podem ressoar mais fortes entre os ouvintes.
Água, parceria com os grandes compositores baianos Antônio Carlos & Jocafi, abre os trabalhos de forma mais orgânica e versa que ‘H20 é salvação’, citando Tom Jobim duas vezes e Vinícius de Moraes. A radiofônica Bola de cristal , que coloca o axé e a guitarra baiana de Roberto Barreto para tocar compara o comportamento atual do homem: em tempos de recrudescimento, o grupo avisa que estamos retrocedendo em cima de uma cama de percussão e bases de sintetizadores. A sequência vem comSalve , espécie de mantra religioso que saúda grupos como Nação Zumbi e Orquestra Rumpilezz, na faixa com influências de Fela Kuti e pede a benção para seguir a caminhada árdua do dia a dia, com participação do rapper BNegão, um dos fundadores doPlanet Hemp, cujas rimas evocam ancestralidade e o sagrado.
O suingue característico de Barreto volta a aparecer em Sulamericano, uma mistura azeitada de rap, dub e pagodão baiano sobre planos e sonhos, descrevendo golpes de estado e a cegueira da justiça contra os mais pobres, com participação do franco-angolano Manu Chao. A reggaeira Sonar chama o rapper Edgar e o bateristaCurumin (e seu bom falsete) para falar de um amor cósmico, de uma força que abençoa a todos. O interlúdio Melô do Centro da Terra, ao som de berimbau e eletronices de Seko Bass fecha Água e prepara o terreno para Fogo.
A pesada Navio reforça a conexão com a África e dá tempero à mistura do grupo com um naipe de metais. O recado é direto, cada vez mais sabido nas ruas: “quem manda navio tá na boa/quem manda no Brasil tá boa”, canta Passapusso. A canção remonta às origens do grupo, com instrumental carregado em quase uma jam session, e saúda o mestre Môa do Katendê, morto à época das eleições em uma confusão com um admirador do atual presidente.Redoma volta ao rap e as batidas eletrônicas de Seko Bass e a guitarra baiana evocam a resistência dos povos quilombolas do litoral baiano. Já Saci se aproxima dos trabalhos recentes do BaianaSystem — o ritmo suingado e frenético ao mesmo tempo, com rimas rápidas e batidas quebradas remetendo ao trio elétrico e à voz rasgada de Passapusso.
A breve Arapuca segue a mesma toada, falando de crise, violência, educação e caos social, adornada pela guitarra baiana de Barreto. As derradeiras Certo pelo certo e Fogo fecham O futuro não demora e apontam novos caminhos. Na primeira, o rapper Vandal conduz o jogo com influências do rock e um refrão pegajoso. Já a faixa-título do Lado B, também curta, é como uma canção de ninar que usa o trip hop para embalar os ouvintes e relembra que o fogo queima em todos. Se não sai totalmente da zona de conforto, o disco coloca o BaianaSystem definitivamente no patamar dos grandes. Para ouvir muitas vezes.
Avaliação: ótimo