As muitas reflexões de ‘Ilha das Flores’, eleito melhor curta nacional de todos os tempos
Curta-metragem de 13 minutos marcou época ao expor forte desigualdade social do Brasil
Ilha das Flores, de Jorge Furtado, foi agraciado, na primeira semana de maio, com o prêmio de melhor curta-metragem da história pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Antes disso, em 2015, Ilha já havia sido considerada pela mesma associação como um dos 100 melhores produções de seu gênero na história. Em 1989, ano de seu lançamento, o filme também levou a categoria curta-metragem no prestigiado Festival de Gramado e um Urso de Prata no Festival de Berlim de 1990. De lá para cá, tornou-se referência entre críticos no Brasil e no mundo, sendo tema de teses em universidades e exibido em escolas como forte documento social, um recorte da profunda desigualdade que persiste no país.
Meu primeiro contato com o documentário fora em 1999, cursando o então sexto ano da escola. As imagens concisas, o texto e a narração que misturavam comédia, ficção, colagens e até animação impactou cada aluno de uma maneira diferente. Em 13 minutos, utilizando um discurso poderoso,Ilha das Flores é uma forte referência em campos diversos, como o jornalismo, a antropologia e a sociologia. O curta mostra a ‘saga’ de um tomate, do seu cultivo pelo lavrador até seu destino em uma mesa de uma vendedora. Um deles, podre, é descartado por ela e vai parar no aterro sanitário que intitula o documentário, localizado às margens do Rio Guaíba, em Porto Alegre . O fruto é, então, disputado por porcos e crianças e adultos, em um dos planos mais marcantes do cinema nacional.
“O telencéfalo altamente desenvolvido permite aos seres humanos armazenar informações, relacioná-las, processá-las e entendê-las. O polegar opositor permite aos seres humanos o movimento de pinça dos dedos o que, por sua vez, permite a manipulação de precisão” (texto retirado do curta). Furtado, que dirigiu e roteirizou o filme escancara o gigante abismo social logo na primeira cartela de Ilha das Flores, onde se lê “Este não é um filme de ficção. Existe um lugar chamado Ilha das Flores. Deus não existe“. Um narrador em off conta como o Sr. Suzuki, um lavrador, trabalha 12 horas por dia, mas não é responsável pela maior produção de tomate, e faz uma breve história do modo de vida capitalista, também tema de crítica.
A história de Dona Anete serve para mostrar as noções dos meios de produção em que estamos inseridos. Quando o tomate é descartado, a comida vai parar junto com o restante do lixo na Ilha das Flores. “O tomate que dona Anete julgou inadequado para o porco que iria servir de alimento para sua família pode vir a ser um excelente alimento para o porco e sua família, no julgamento do porco. Cabe lembrar que dona Anete tem o telencéfalo altamente desenvolvido enquanto o porco não tem nem mesmo um polegar, que dirá opositor“. O “mote” do telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, então, torna-se quase orgânico à produção, que também destaca o ambiente altamente tóxico do aterro, onde humanos disputam com animais em meio ao instinto mais básico: a sobrevivência.
Ilha das Flores é habilmente construído e, 30 anos depois de seu lançamento, profundas reflexões de amplos aspectos do viver. Arte, enfim. O curta está disponível no Canal Brasil Play.
Confira os 10 melhores curtas e, ao fim, clique para ver os 100 eleitos
1) Ilha das flores (1989), de Jorge Furtado
2) Di (1977), de Glauber Rocha
3) Blábláblá (1968), de Andrea Tonacci
4) A velha a fiar (1964), de Humberto Mauro
5) Couro de gato (1962), de Joaquim Pedro de Andrade
6) Aruanda (1960), de Linduarte Noronha
7) SuperOutro (1989), de Edgard Navarro
8) Maioria absoluta (1964), de Leon Hirszman
9) A entrevista (1966), de Helena Solberg
10) Arraial do Cabo (1959), de Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro