‘O Mecanismo’ ainda peca no roteiro em sua segunda temporada
Problema do som que deixava falas de Ruffo (Selton Mello) incompreensíveis foi resolvido, mas personagem segue sussurrando e roteiro ainda deixa a desejar, mesmo com história centrada na operação Lava Jato sendo tão rica
A segunda temporada de O Mecanismo, que tem como fio condutor aLava Jato, chegou este mês à Netflix. Se o problema no som que prejudicou a narração na primeira temporada foi resolvido, o roteiro ainda deixa a desejar, mesmo com a quantidade de informações da operação que abalou o país e que deixa House of Cards no chinelo.
Com o áudio resolvido, o ruim agora é ouvir as frases clichês, simplistas e até desnecessárias do ex-delegado da Polícia Federal Marco Ruffo (Selton Mello) — que não fala, sussurra, que às vezes soam como repetições do lugar comum disparado na trincheira polarizada que dividiu o país. O expediente narrativo, usado a exaustão por José Padilha em outros trabalhos — filmes Tropa de Elite e sérieNarcos— não ajuda a cativar o espectador.
O roteiro cria situações absurdas, mesmo tendo uma história real tão rica. A forma como é descoberta “o mecanismo” por Ruffo soa amador. Como um experiente ex-delegado da PF não sabia que a corrupção era sistêmica, que existia há décadas? Se esperava mais da mente por trás da investigação, responsável por municiar a delegada-chefe Verena (Caroline Abras).
Se a polêmica da primeira temporada foi a frase de Romero Jucá (“estancar a sangria”) sendo colocada na boca do personagem inspirado em Lula, além das tendências parciais forçadas pelo antipetismo, Padilha agora busca mais neutralidade ao narrar os fatos, mesmo que uma obra “livremente inspirada” tenha suas liberdades narrativas, o que é o caso. Entretanto, a frase volta a ser repetida, agora pelo personagem inspirado em Aécio Neves, que até aparece em uma cena cheirando cocaína.
O leque aberto quanto aos políticos/partidos e outros setores envolvidos na corrupção no país é um dos pontos positivos desta temporada. E isso já fica bem claro logo na abertura, com a trilha sonora ‘Reunião de Bacana’ e o seu forte refrão ‘se gritar pega ladrão’ sendo executado enquanto imagens de vários políticos reais são exibidas.
A trama foca nas movimentações da oposição ao governo junto a membros do judiciário e até com o vice-presidente para derrubar a presidenta eleita Janete (Sura Berditchevsky), assim como todas as consequências da conspiração, que expõe também o presidente da Câmara dos Deputados.
O grande mote da segunda temporada é a transformação do juiz Rigo (Otto Jr.), que toma decisões questionáveis movidos por pressão, mas também por muita vaidade. A quebra do sigilo que divulgou os áudios entre a presidenta Janete e o ex-presidente Gino (Arthur Kohl), assim como a condução coercitiva deste, escancaram esta mudança.
Verena ganha mais protagonismo e responsabilidade. O dilema dela em evitar cair na armadilha de tomar decisões que possam soar políticas marcam a virada do roteiro nesta temporada, apesar da personagem derrapar ao entregar o áudio da conversa entre Janete e Gino [se a gravação não tinha sido autorizada, porque entregar à Justiça?].
O tema da delação premiada também é explorado, o mostrando como um instrumento usado de forma política para obter informações a qualquer custo, mesmo que as vezes não se tenha provas. Nela está centrada a figura do empreiteiro Ricardo Brecht, o último dos executivos de empresas ligadas à corrupção revelada pela Lava Jato que ainda não tinha sido preso na série.
A força do personagem, que seria inspirado em Marcelo Odebrecht, dá-se pela bela interpretação de Emílio Orciollo Neto, que imprime uma faceta sociopata e perigosa à figura do “número 1” dos empresários envolvidos no esquema criminoso.
Enrique Diaz se destaca mais uma vez na pele do doleiro Roberto Ibrahim, inspirado em Alberto Youssef, e que mais uma vez é caçado pelos agentes da ‘Polícia Federativa’. O personagem representa uma das principais peça da engrenagem criminosa que assola o país há décadas na trama.
Outra boa abordagem de ‘O Mecanismo’ 2 é a espetacularização da votação do impeachment da presidenta Janete, inclusive mostrando um personagem com traços semelhantes com do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. A temporada aponta que os protestos, investigações da Lava Jato e algumas decisões tomadas no campo político abriram espaço para figuras e setores conservadores, mas mais uma vez com chavões.
“A opção do PT matou a esquerda. E com a direita fisiológica e desonesta entrando na mira da Lava Jato, formou-se um vazio bem perigoso. Um vazio que poderia ser preenchido pelas forças repressivas de um passado não muito distante”,diz a sussurrada do personagem de Selton Mello.
Caso tenha uma terceira temporada, até então não confirmada, muita lenha ainda pode ser queimada. Sendo os diálogos e situações melhor amadurecidos no roteiro, assim como a edição e fotografia de algumas cenas, O Mecanismo pode ganhar mais fôlego e conquistar como thriller político.
Mudanças bruscas nas narrativas da primeira para segunda temporada, com os partidos antes com nomes fictícios e agora sendo chamados pelas siglas reais, e uma hora a PF ser retratada como Polícia Federativa, outra Polícia Federal, ajudam ainda mais na confusão. O espectador também não pode ser feito de idiota: Ruffo, sem um tostão no bolso e sem pistas do doleiro Ibrahim, o localiza no Paraguai e compra até arma e moto. E olha que outros furos são deixados pelo caminho.
A série se baseia na maior operação contra a corrupção do Brasil, com isso é necessário que se tenha cuidado com algumas licenças poéticas, mas ainda assim discordâncias quanto à abordagem continuarão existindo, por se tratar de um fato real e recente. Como diz Ruffo logo no primeiro episódio, “a ideologia cega”.
Avaliação: Regular