‘Bacurau’ é ode à resistência em um país que caminha no precipício

 em cinema e tv

Longa mistura gêneros e faz leitura dolorida, mas esperançosa, de um Brasil do futuro

Quando Bacurau começa, vê-se um Brasil do espaço e ouve-se a voz inigualável de Gal Costa cantando ‘Não identificado’, lançada em 1969, e logo o campo abre para uma estrada esburacada no oeste de Pernambuco, onde Teresa (Bárbara Colen) viaja de carona em um caminhão-pipa para o enterro da avó que na fictícia cidade que nomeia o filme. Ambientado no sertão do Nordeste em alguns anos no futuro, em um país literalmente dividido, o longa de Kleber Mendonça Filho (O Som ao RedorAquarius) e Juliano Dornelles (O Ateliê da Rua do Brum) faz uma ode à resistência para os dias atuais e traça uma leitura dolorida – mas esperançosa – dos muitos Brasis que podem surgir em pouquíssimo tempo.

O enterro de Carmelita (Lia de Itamaracá) reúne os locais e, nos dias que seguem, seus habitantes se deparam com um acontecimento estranho: Bacurau não consta mais no mapa, sua existência fora apagada dos meios digitais. Paralelamente, um grupo de assassinos, liderados por Michael (Udo Kier), trama para assassinar os moradores e, dessa maneira, dar fim a qualquer vestígio do povoado. A partir daí, o filme expõe referências cinematográficas e passeia por territórios familiares de seus realizadores, que constroem e entregam uma azeitada mistura de gêneros ao examinarem com cuidado as relações político-sociais e as amplas reflexões que cercam a obra.

Mendonça Filho e Dornelles jogam no mesmo caldeirão o faroeste espaguete do grande Sergio Leone e o horror de John Carpenter (preste atenção no nome da escola municipal do filme) passando pelo fundamental Glauber Rocha (o enterro, as crianças brincando no escuro) e pela ficção sem causar estranhamento, enquanto vão mostrando habilmente as tensões e reações coletivas de seus personagens – ninguém é mais importante que todos e essa é uma das chaves para entender as múltiplas mensagens do roteiro. No começo, somos levados a crer que Teresa seria o fio condutor da história, mas os destaques são amplos e um dos acertos da produção. Sônia Braga está estupenda como a médica Domingas e o veterano Kier, que já participou de filmes de arte até experimentos com o trash, caminha com naturalidade na canastrice e conquista exatamente pela crueza de seu personagem. A cena que envolve os dois é uma aula de cinema e um dos melhores momentos de Bacurau.

Há muitos signos no longa e o mais constante é o da morte. Essa presença, da abertura ao fim com sentido apoteótico, é permeada por elementos que fazem parte dos outros projetos de seus diretores, mas notadamente em Mendonça Filho, sobretudo nas cenas de sexo; alegóricas ao totalitarismo quando ocorrem com dois matadores; naturais com Teresa e Pacote (Thomás Aquino). O humor é outra marca, que sublinha tanto a personalidade dos moradores da cidade, do velho violeiro à dona do bar, como aparece em pequenas doses no avançar sem deixar tudo se transformar em puro exercício de estilo ou pastiche. Outro ponto é a memória e sua preservação, vista como verdadeira identidade do povo. Não à toa, dois elementos que simbolizam resistência e abrigo são a escola e o museu no terço final, maistarantinesco que o próprio Quentin Tarantino. Esta outra alegoria é cartunesca porque, tal qual Tarantino, não flerta com a violência sem sentido, mas com a própria explosão catártica.

O resistir que permeia o longa também conversa com a metalinguagem. Mendonça Filho e Dornelles sublinham que é preciso ser forte para produzir cultura no país saindo da zona de conforto que se tornou o cinema nacional, ultimamente remodelando produções estrangeiras inspiradas em comédias de variedades muito comuns entre o fim da década passada e o começo desta. Desde o começo. mas notadamente nas tomadas no museu, os dois convidam o espectador a pensar e a figura de Lunga (Silvero Pereira, excelente) – dando corpo a um fugitivo que reconfigura o imaginário ao apresentar-se de unhas pintadas e longas madeixas  – representa o vetor dessa mudança.

Ao fim vem a catarse, que também passa longe de ser gratuita e afasta o didatismo inerente ao que se vinha fazendo por aqui, até mesmo quando a mensagem principal do filme sendo relembrada quando os créditos aparecem, com ‘Réquiem para Matraga’, canção de Geraldo Vandré. Bacurau é um grande marco na produção brasileira, talvez se igualando à Cidade de Deus em importância e grandiosidade para tudo o que veio depois de 2002, uma análise honesta de como se pode derrubar ou construir pontes entre nós mesmos. A qualquer tempo, especialmente quando o obscurantismo já parece sufocar a realidade, é preciso estar atento e enterrar quaisquer manifestações que levem ao mal ou permitam seu renascimento.

Avaliação: Ótimo

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