‘A Favorita’ retrata a alma humana com crueza e sem pena

 em cinema e tv

Filme mais palatável do grego Yorgos Lanthimos foca nas relações de poder entre três mulheres, abrindo espaço para o humor

Entre os cineastas que recentemente receberam atenção da indústria de Hollywood, Yorgos Lanthimos se destaca por quase não fazer concessões ao seu cinema, fortemente influenciado por grandes diretores como Ingmar Bergman. Em geral, Lanthimos se preocupa em expor temas sobre a humanidade em si e fazer mais questionamentos do que oferecer respostas: o que viemos fazer no mundo? Qual nosso propósito? O amor nos faz mais humanos? Os filmes mais recentes do diretor, O Lagosta (2015) e O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) são bons exemplos dessa marca, que também trazem mais elementos do experimentalismo. Com A Favorita, o grego mostra que há, principalmente, muito espaço para o humor em suas histórias e entrega o filme mais palatável de sua curta e bem-sucedida carreira.

Tal flerte com o humor existia em todas as suas produções, mas A Favorita escancara essa vertente. A comédia/drama se passa na Inglaterra do século XVIII, no reinado da Rainha Anne Morley (Olivia Colman, forte candidata ao Oscar), que ‘governa’ um país em guerra com a França. Na corte, há espaço para conversas fúteis e afazeres inúteis, como assistir a uma corrida entre gansos ou atirar em aves. Em meio a tensões no Parlamento, Anne conta com sua assistente, conselheira e amante, a duquesaSarah Churchill (Rachel Weisz), que efetivamente governa a nação. No entanto, a convivência entre as duas será remexida com a chegada da prima de Sarah, Abigail Hill (Emma Stone), uma ex-abastada alocada para a limpeza e que busca estar no topo novamente, não importa o custo.

Nesta dinâmica criada/duquesa e a relação de poder inclusa com a rainha reside a maior parte da tensão da trama. As performances de Rachel Weisz e Emma Stone, indicadas ao prêmio de Atriz Coadjuvante, se colocam entre as mais espetaculares do cinema recente e é difícil não pular de torcida muitas vezes conforme as maquinações de ambas se colocam em movimento. Não é apenas uma luta pela aprovação (e consequente adoção) da figura tempestuosa da Rainha Anne, mas uma batalha pela sobrevivência. Dessa forma, Lanthimos revela outra vez sua paixão pelo comportamento humano, neste caso o que nos torna pessoas tão agarradas ao poder ou pelo menos a uma necessidade de perseguir tal sentimento. Dentro desse microcosmo, há a carga de experimentalismo e exagero familiares ao grego, aqui diretamente ligados a boas doses humor inteligente e inesperado, fruto do ótimo roteiro de Deborah Davis e Tony Macnamara.

O melodrama e exagero presente também nas atuações é o que faz A Favorita tão especial. É fácil entender o porquê de Olivia Colman conquistar como a monarca: ela transita entre a raiva, tristeza, drama, comédia e tirania em questões de segundos. O filme é do trio, mas tudo parece um ensaio para as reações da rainha, uma figura tão magnética quanto digna de pena por viver suas próprias limitações. A vulnerabilidade de todos os personagens é palpável e ninguém parece a salvo em um mar de opressão, luxo, solidão e muita, muita manipulação. Há uma fragilidade e ordem que não parecem apenas transitórias enquanto o poder de estado (e individual, claro) circula entre as três personagens principais. Tudo fica claro na perturbadora cena final — há muito esperada, embora não inesperada. Lanthimos atesta que a crueldade e o encarceramento da alma talvez sejam as piores punições para alguém.

Avaliação: Excelente

 

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