‘A Terra é Plana’ se debruça sobre teoria absurda e seus admiradores

 em cinema e tv

Documentário lança olhar sobre a vida de conhecidos terraplanistas e suas lutas para contrapor a ciência

Logo no início de ‘A Terra é Plana‘ (Behind the Curve, no original), documentário de Daniel J.Clark em cartaz na Netflix, um astronauta faz uma observação que se encaixa em um dos muitos retratos sobre esse movimento que busca contrapor o cerne da ciência: “Eu não acredito e não sei como estamos falando nisso”, diz, espantado. Os terraplanistas, como são chamados, ganharam força nos últimos anos por meios de vídeos, textos e podcasts postados na internet e todos têm a convicção de que não estamos vivendo em um globo terrestre, mas em uma espécie de domo — o formato da Terra não teria curvas e as geleiras da Antártida fariam um paredão gigante nas bordas do planeta. Parece muito absurdo, não? Mark Sargent e Patricia Steere, duas figuras proeminentes dessa corrente retratados no doc, discordam.

Sargent, tido como o ‘pai’ do terraplanismo é o primeiro aparecer, fazendo questionamentos incisivos à câmera: “Queria saber o motivo de sempre vermos o horizonte em linha reta. Se a Terra está girando, quero saber o porquê de não sentir. Num mundo global, não sentimos nada girar?”, pergunta. A princípio, o documentário poderia desembocar para a galhofa pura e forte, mas o maior acerto de Clark é retratar seus personagens sem subestimá-los e apresentar a visão de cientistas, engenheiros e, principalmente, psicólogos para ajudar a entender como funciona a cabeça dessas pessoas. Basicamente, os terraplanistas negam a verdade empírica básica, por abraçarem a convicção que alguém está mentindo para eles.  Na visão do documentarista, eles são pessoas normais com um ponto de vista radicalmente diferente da maioria.

O ponto central de ‘A Terra é Plana‘ é simples: é mais fácil ouvir o que essas pessoas têm a dizer e tentar explicar como o mundo funciona do que caçoar delas. O diretor, então, acertadamente mostra a rotina dos terraplanistas — pessoas em vidas ordinárias, com amigos em seus grupos e a mesma visão apaixonada sobre um tema, com habilidade e energia.  Não é muito diferente de nós, mesmo que embasados por centenas de anos de ciência e toneladas de informações verdadeiras que comprovam o formato redondo do planeta. Em certa passagem, um físico da Nasa diz em um encontro de cientistas que é dever que “pessoas com conhecimento sejam cientistas melhores” e o corte se volta para Sargent tentando converter um pedestre a embarcar em seus absurdos. Nada mais didático e humano que isso.

É claro que há (muitos) momentos de riso gratuito, mas Clark não mira as lentes de forma intencional, ele apenas deixa seus retratados se enrolarem. As joias especiais vão para a visita de Patricia e Mark à sede da Nasa, seus encontros (e o nervosismo quase infantil de Mark) para gravar podcasts e a tensão sexual evidente entre eles, engenheiros sem explicação para o funcionamento de um eclipse solar, o encontro de terraplanistas e o derradeiro experimento envolvendo lasers e pedaços de madeira. O documentário também mostra os perigos de se aprofundar muito em uma mentira. Como um psicólogo afirma, há uma grande diferença entre ceticismo e negação da realidade, e o que tais admiradores fazem é confrontar qualquer autoridade vigente — um deles chega a falar dos ‘perigos’ de se vacinar e outras teorias conspiratórias.

O fim, excelente, deixa um sorriso no rosto. ‘A Terra é Plana‘ é bem-sucedido por fazer os espectadores se importarem com figuras marginalizadas, sem deixar de alertar para o quão absurdo, perigoso e triste pode ser a contradição humana.

Avaliação: Ótimo

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