Com ‘Dor e Glória’, Almodóvar se confessa entre delicadeza e humor
Espécie de memória biográfica na tela, filme mostra diretor fazendo as pazes com si mesmo
Pedro Almodóvar, cineasta mais famoso da Espanha, tem uma carreira tão variada quanto marcante. Seus filmes têm raras qualidades que, quando bem executadas, contam uma bela história sobre família, infância, sexualidade, humor e loucura. Com Dor e Glória, o diretor parece ter se aberto mais aos espectadores, quase como usando a história para confessar pecados, histórias escondidas e fazer um balanço tanto na sua jornada no cinema quanto de seu tempo de vida até aqui. Este não é o Almodóvar impecável de Tudo sobre minha mãe (1999), Fale com ela (2002) ou Volver (2006), seus melhores filmes, mas está próximo da linguagem que o consagrou em filmes tão estranhos quanto engraçados, como Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988).
Acompanhamos Salvador (Antonio Banderas, excelente) um cineasta consagrado com cabelo desgrenhado (lembra alguém?) que convive com dores físicas e espirituais enquanto rumina sua infância em um vilarejo pobre, cercado por mulheres fortes (tema mais do que familiar), incluindo sua mãe Jacinta (a musa de Almodóvar, Penélope Cruz). Enquanto o personagem tenta dar um basta em seus problemas físicos e psicológicos, lhe é oferecido um debate sobre seu filme Sabor, um clássico feito com o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia), de quem o diretor guardava uma mágoa intensa — é dito que Crespo nunca entregou a performance que ele sonhara, algo que parece superado após 30 anos de sua estreia. O reencontro é inevitável e com ele vem a ‘novidade’: Salvador decide experimentar heroína e é prontamente servido, ficando viciado.
Mergulhando na droga, o diretor revive flashbacks de sua infância na aldeia de Valência, nos anos 60, onde se instala com seus pais em uma caverna apertada e suja. A relação com a mãe, claro, é de intensa admiração. Ela observa com carinho e orgulho quando seu filho decide ensinar um pedreiro (César Vicente) a ler e escrever, o menino por sua vez desenvolve uma relação tenra com o rapaz, que dará seus primeiros sinais de sua sexualidade ao vê-lo tomar banho. Sobre Salvador, paira uma espécie de culpa religiosa por não ter conseguido realizar o último desejo de Jacinta, e sua vida praticamente para após a morte dela. Não à toa, sua criatividade vai para o ralo em meio às lembranças da vida de outrora: ele não consegue se conciliar com seu futuro se não fez as pazes com o passado.
“Sem filmar, minha vida não tem sentido”, diz Salvador-Almodóvar em certo momento e a produção também trata de criatividade desde o primeiro momento do monólogo que abre o filme. A atuação estupenda de Banderas, cheia de nuances físicas e psicológicas é memorável. Fica claro o turbilhão emocional do personagem-ator até encontrar sua redenção, por isso Dor e Glória também se revela um metafilme onde seu realizador parece ter feito as pazes com si mesmo. Há um exame profundo de suas experiências, notadamente o intenso romance com Federico (Leonardo Sbaraglia, ótimo) em seus anos em Madrid. A cena curta entre os dois está entre as mais bonitas e melancólicas do cinema recente. Há também um aceno para Volver na “questão fantasmagórica” que parece permear a obra do cineasta, mas de forma mais sóbria e lúdica.
O humor almodovariano não fica de fora e surge quando se menos espera. Desde um slide animado sobre as muitas doenças de seu protagonista, até as tiradas inteligentes de um menino. Há muito de memória, afinal o próprio cinema é isso, masPedro Almodóvar não brinca em serviço. Em outra passagem, um médico pergunta sobre o próximo projeto de Salvador e ele responde: “Você nunca sabe”. Não só sabe, como tem controle absoluto sobre sua arte. É seu filme mais lúcido em algum tempo, tornando-se facilmente ressonante no espectador. Talvez você não pense muito em Dor e Glória, mas certamente quando o fizer será com afeto e graça.
Avaliação: Ótimo