‘Coringa’ tem roteiro raso e trama mal conduzida
Longa de Todd Phillips enfraquece discussões e tenta normalizar o absurdo
A expectativa era grande para Coringa, novo filme deTodd Phillips (Se Beber, Não Case!, Cães de Guerra). A escalação de Joaquin Phoenix para o papel principal, o envolvimento de Robert De Niro, as fotos vazadas mostrando a bela direção de arte, a aclamação em Veneza... parecia que o maior inimigo do Batman ganharia uma história de origem à altura, mostrado com discrição no cinema emBatman (1989) eBatman: O Cavaleiro das Trevas (2008), com Jack Nicholson e Heath Ledger dando suas marcas pessoais ao Palhaço do Crime. Phillips, no entanto, em roteiro escrito com Scott Silver (8 Mile: Rua das Ilusões, X-Men Origens: Wolverine) derrapa feio tanto na direção quanto no texto.
O longa começa mostrando uma Gotham City decadente, entre o fim dos anos 70 e início dos anos 80, onde a sujeira e o crime estão logo na esquina. Arthur Fleck (Phoenix) trabalha como palhaço em atividades variadas e sonha em fazer sucesso com shows de stand-up. Fleck ocupa-se de cuidar da mãe doente, Penny (Frances Conroy) e seu passatempo é assistir o show do apresentador Murray Franklin (De Niro) enquanto projeta sonhos e pulsões variadas em sua cabeça e em anotações em seu diário. Arthur sofre de distúrbios severos e de uma condição que o faz gargalhar a qualquer momento, geralmente em um contexto inapropriado, e se trata com uma psiquiatra que pouco pode fazer para ajudá-lo.
Coringa se pretende um estudo de personagem, mas pouco faz para construir sua figura central em sua caminhada sem volta à loucura. Phillips poderia discutir saúde mental e suas variadas consequências de forma aprofundada e não em frases soltas ou diálogos que provocam pouca reflexão. A inspiração clara do diretor são dois filmes de Martin Scorsese, os clássicos Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982), ambos com De Niro no elenco. A ambientação se baseia naquele, com algum aceno para Travis Bickle na construção do palhaço, e o show de Murray é livremente associado ao papel de Jerry Lewis neste. Mas o filme está longe do brilhantismo desses exemplos, principalmente distante do roteiro de Paul Schrader.
A escalada de violência que contribui para a psicopatia de Fleck é preguiçosa e o roteiro peca por apresentar soluções apressadas para questões que não são simples e, portanto, deveriam ter um cuidado muito maior. Phillips e Silver flertam com a normalização do absurdo ao não se deterem sobre nenhum dos temas com propriedade e esvaziarem as próprias discussões. Coringa incomoda e tem a faca e o queijo na mão, mas tudo é apresentado de forma frouxa. Vemos como o sistema destroça uma pessoa com problemas mentais, como a saúde não é prioridade, como a banalização da violência arrasta o personagem central para uma espiral de perdas, em um recorte sobre os males do capitalismo e do avanço da positividade como mantra. Em uma análise sobre a parte que concerne a luta de classes, mostrada de forma esfumaçada conforme a história avança, pode-se argumentar que os insatisfeitos são massa de manobra de uma pessoa vazia como o palhaço, que nada tem a oferecer a não ser o caos, mas a amarra não se fixa. A ligação com o universo do Homem-Morcego é apressada e há uma cena envolvendo Arthur Fleck e Thomas Wayne (Brett Cullen) em um banheiro bastante vergonhosa, mesmo que sua representação seja fidedigna sobre o poder do sistema sobre as classes oprimidas.
Há capricho na trilha sonora de Hildur Guðnadóttir e a fotografia de Lawrence Sher é funcional, mas a constatação é que os acertos somente aparecem na parte técnica. Os atores tentam, mas não podem fazer muito. Phoenix se esforça e consegue adicionar algumas camadas ao personagem, com sutileza em poucos momentos, mas é refém de uma trama que apenas tateia questões e não se prende a elas. Seus movimentos lembram o de Freddie Quell, do excelente O Mestre (2012), e Joe de Você Nunca Esteve Realmente Aqui (2017). Os demais têm algum destaque, Zazie Beetz fazendo a vizinha de Arthur é especialmente desperdiçada, e lutam para trazer alguma gama de seriedade para o que é apresentado. Um sistema quebrado pode criar monstros? Suas ações podem ser validadas pela imprensa? Certamente, e exibir o anticapitalismo para milhões de pessoas tendo um lucro bilionário (a cobra come o próprio rabo, afinal) é uma grande ironia, a prova que a indústria venceu sobre a arte neste caso. Coringa parecia promissor ao querer se debruçar sobre questões fundamentais, mas a sensação de que falta algo a tudo resulta apenas em uma tentativa escorregadia de uma boa ideia.
Avaliação: Regular