Em tempos de pandemia, ‘O Poço’ pode ser o filme que precisávamos
Em cartaz na Netflix, produção espanhola foca na desigualdade social
A pandemia do coronavírus, que já matou milhares de pessoas no mundo, está entre nós, apesar de governantes, que vão de prefeitos ao Presidente da República, tentarem negar seus efeitos e consequências devastadoras. Quando anunciada a chegada da covid-19 ao Brasil, a reação para a classe média e os ricos foi imediata: estoque de alimentos e bens necessários e alta procura pela hidroxicloroquina nas farmácias, cujo eficácia ainda não foi comprovada até a publicação deste texto, deixando pacientes com doenças como lupús à míngua. O que isso tem a ver com O Poço, produção espanhola de 2019 em cartaz na Netflix? Em tempos de pandemia, o filme do diretor estreante Galder Gaztelu-Urrutia, pode ser o que precisamos para encarar tempos sombrios durante este período e além.
O cineasta espanhol escancara a profundidade da desigualdade social no mundo em uma bem acabada embalagem de ficção científica e horror, dois gêneros que se dedicam desde sempre a examinar causas e efeitos de ações políticas no cotidiano. A trama de O Poço começa quando Goreng (Iván Massagué) acorda em um espaço fechado de poucos metros. Ao seu redor, uma abertura no chão que se estende por vários níveis levando uma certa quantidade de comida do andar mais alto ao mais baixo. Seu companheiro de “experimento” é Trimagasi (Zorion Eguileor), um idoso que já passou tempo demais no lugar.
Para sobreviver, os dois precisam comer o que chega na plataforma e não podem guardar alimentos sob pena de serem punidos com calor ou frio extremo. A proposta de O Poço é muito simples sociologicamente: quem está acima, as classes mais abastadas, tem direito ao melhor que o local tem a oferecer e quem está abaixo tem de se contentar com restos ou mesmo nada. Como viver em harmonia em um sistema onde há concentração de benesses apenas para os mais afortunados? E por que os que vivem mais abaixo brigam entre si?
Gaztelu-Urrutia entrega seu quadro equilibrando as perguntas e respostas, ainda que repletas de cinismo. À medida que a jornada de Goreng e Trimagasi (um homem que acredita no capitalismo e tem uma fala anticapitalista em uma das viradas do filme) prossegue, há uma miríade de referências que falam com os espectadores. “É mais justo separar a comida”, ele argumenta com seu colega de cela, que devolve: “Você é comunista?”. O debate que envolve solidariedade, bom comportamento, racionalização e rumos de nós mesmos segue com as diversas viradas da narrativa, que finca os pés na sanguinolência depois da meia hora inicial com boas atuações de Massagué e, especialmente, Eguillor. O diretor também deixa escapar suas inclinações hobbesianas ao expor que ‘o homem é o lobo do homem’ e esquece que o problema está muito mais na estrutura (a prisão) do que em seus agentes (os presos).
O Poçotem suas qualidades e seu lançamento-coincidência parece um acidente macabro em tempos de isolamento. Não faltam por aí teorias sobre o fim do longa, você as encontra facilmente em qualquer lugar, mas a dita “mensagem” gira em torno de uma questão só. Neste cruzamento truncado entre os filmes de Luis Buñel, Alfred Hitchcock e o grande escritor Miguel de Cervantes (aqui referenciado literalmente), o roteiro expõe que o sistema não beneficia quase ninguém e resiste arduamente contra quaisquer mudanças em sua cadeia e a mudança se dá pelo sacrifício ou recomeço completo. Ainda que o final seja repleto de culpa cristã (uma criança é a esperança da humanidade, o protagonista não tem direito de sobreviver pelo banho de sangue que promoveu) e o desenvolvimento seja precário, vale assistir. Afinal, refazer-se requer esperança que, algum dia, sejamos mais unidos, honestos e, principalmente, verdadeiramente solidários.
Avaliação: Bom