‘Nós’ triunfa ao escancarar abismo profundo na sociedade

 em cinema e tv

Novo filme de Jordan Peele, diretor de Corra!, analisa as relações humanas e o medo do outro

Jordan Peele, conhecida figura vinda da comédia, pegou o mundo de surpresa com Corra! (2017), um conto de horror real que examina os efeitos do racismo estrutural na sociedade, cujo resultado rendeu merecidamente o Oscar de Melhor Roteiro Original ao seu criador. Com Nós, Peele se detém sobre as relações humanas e o medo do outro — tema atualíssimo em tempos de forte xenofobia ao redor do mundo, inclusive no Brasil — e quão longe podemos ir para proteger um supostamente ‘confortável’ modo de vida. Com forte inspiração em Além da Imaginação, série clássica que ganhará um remake pelas mãos do diretor, o maior mérito do filme é seu impacto ao fim, ante uma revelação fundamental para o andamento do roteiro, e como as questões propostas reverberam.

Nós começa com a pequena Adelaide Thomas em um parque de diversões junto à orla de uma praia com seus pais, e sua curiosidade frente ao pai descuidado a leva para um túnel de espelhos, onde ela encontra seu doppelgänger, espécie de gêmea do mal, e sai traumatizada da experiência. Nos dias atuais, Adelaide (a fabulosa Lupita Nyong’o) está viajando com o marido Gabriel (Winston Duke, de Pantera Negra) e seus dois filhos, Jason (Evan Alex) e Zora (Shahadi Wright Joseph) de volta à praia da fatídica experiência. Não demora muito para o reencontro das duas acontecer e isso é tudo que você precisa saber sobre a trama. Ao contrário de Corra!, aqui a tensão é construída e reconstruída a todo momento, alinhada ao forte alívio cômico espelhado principalmente no personagem de Duke.

Dito isto, todo o filme carrega uma imensa reflexão sobre o passado e o presente, as explorações de classe e cor, as construções que escancaram privilégios para poucos e migalhas para muitos, os descaminhos de quem está cada vez mais conectado em algo para se desconectar rapidamente do outro, o material que sobrepõe uma simples conversa, os absurdos cada vez vistos como comuns. ‘Nós’ oferece muito mais camadas que o projeto anterior de Peele, e sugere uma leitura atenta de seus cortes. Toda cena carrega uma pista que leva a outra sobre a reviravolta que vai aparecer lá pelos cinco minutos finais. Tal conquista não seria possível sem um elenco afiado: as performances consistentes e ferozes de Lupita, especialmente na pele de sua ‘gêmea má’, são dignas de qualquer prêmio ou indicação futura do cinema. O elenco de apoio, encabeçado por Elizabeth Moss (a aia de The Handsmaid Tale), surge para dar mais significado e prover discussões ainda maiores.

As comparações com M.Night Shyamalan vão surgir, mas Peele vai mais longe que o simples “Ah, como eu não imaginei isso?” para um “Ah, eu não imaginei isso… e PRECISO pensar o porquê”. Há acenos aqui e ali para as obras de Steven Spielberg (a comédia, a camisa de Jason) e Alfred Hitchcock (Os Pássaros, por sugerir que algo está fora de ordem), mas o diretor propõe olhar até para o que parece óbvio: canções comoGood Vibrations, dos Beach Boys, e Fuck the Police, do N.W.A., ocupam uma das cenas mais assustadoras do filme e não estão lá apenas como pano de fundo em uma pretensa brutalidade ou em um novo alívio cômico.

Entre o horror, a comédia e o comentário político-social, Nós abarca tudo sem perder a identidade, uma grande conquista dos envolvidos. Quem for ao cinema vai ver um artista desenvolvendo e evoluindo seu trabalho como poucos e o que fica são as várias discussões levantadas. Como sugere o último frame, os resultados de despertar o imaginário ganhando consciência no processo podem ser bastante revolucionários.

Avaliação: Ótimo

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