‘O Irlandês’ é uma aula de cinema e mostra Scorsese afiadíssimo
Elenco espetacular e roteiro enxuto dão conta de grande filme sobre mortalidade e fracassos
Martin Scorsese tornou-se persona non grata recentemente quando, com alguma razão, disse que os filmes da Marvel não são cinema. Apaixonado pelo fazer artístico, o diretor tem em seu currículo grandes clássicos como Taxi Driver, Alice Não Mora Mais Aqui,Touro Indomável, Os Bons Companheiros, O Lobo de Wall Street (cuja importância já começa a ser reavaliada) e tantos outros. Em O Irlândes, Scorsese entrega um grande ensaio sobre mortalidade e fracassos em um roteiro enxuto e bem trabalhado de Steven Zaillian, e talvez sua melhor obra sobre a máfia e não glamourização do crime. Produzido pela Netflix, que exibe o filme a partir da próxima sexta-feira (27), o filme estreou em poucos cinemas do Brasil, mas fica o aviso: vá ver sem demora.
Desenvolvido a partir de 2017 e com um orçamento digno de blockbusters para rejuvenescer seus atores principais, O Irlandês conta a história de Frank Sheeran (Robert De Niro), um veterano de guerra conhecido pelo apelido do título, que trabalhou para mafiosos por várias décadas e seu relacionamento com o capo Russell Bufalino (Joe Pesci), o polêmico líder sindical Jimmy Hoffa (Al Pacino) e as consequências de seus atos em sua vida e de sua família. Conhecido como ‘pintor de paredes’ (Ouvi dizer que você pinta paredes é o título não-oficial do filme, baseado no livro de Charles Brandt) em referência ao sangue de suas vítimas mortas com tiros na cabeça, Sheeran conhece Bufalino em um acaso e Hoffa após uma sucessão de “missões” que fazem seu nome circular. Disfarçado de “filme de máfia”, todo o roteiro fala sobre escolhas erradas, danos e perdas, ações e consequências, crime e castigo à moda Scorsese, portanto.
O Irlandês guarda semelhanças com Os Bons Companheiros e Cassino, as cenas do Copacabana, a trilha sonora e os enquadramentos dos veículos e os travellings impecáveis (atenção para a cena de abertura, o “ethos-Scorsese” está todo nela) acenam para obras anteriores, mas aqui o diretor faz seu trabalho mais primoroso. As 3h29 de duração passam voando e você saíra do cinema ou de sua casa desejando ter visto mais sobre uma jornada cheia de dissabores, absurda e tensa, sem seus personagens serem julgados e com uma profundidade sem igual, notadamente os três personagens principais.
Martin Scorsese exercita sua veia cômica sem amarras e o riso vem fácil, sem atropelos e muitas vezes de forma inesperada. A dicotomia entre violência e humor é uma constante e não torna o filme engessado, mas constrói boa parte de sua dinâmica. O cineasta imprime essas características fortes, com foco na segunda, sem recorrer a exercícios de estilo: tudo já foi usado, na verdade só é feito com absoluto controle de técnica e ritmo que quase não encontra paralelos. A bela fotografia de Rodrigo Prieto, em closes que ajudam a mostrar a sofisticação dos atores ou da construção de uma tomada, e a edição da parceira Thelma Schoonmaker são um ponto alto do campo técnico. Da brutalidade para uma bela tomada passam-se segundos.
É difícil dizer quem se destaca mais entre Pesci, De Niro e Pacino. A química entre dois ou os três em cena é uma aula de atuação, seja nas cenas mais densas ou nas cômicas — e há um bom número dessas. Tudo se resume sobre a moral de Sheeran e como ele lida com suas escolhas e as consequências de seus atos a cada vez que é testado, seja por Bufalino ou Hoffa. A performance de De Niro é devastadora, seja em seus olhares que misturam compaixão, frieza e um saber definitivo de que, de certas coisas, não há como voltar atrás. Suas cenas com Pacino ou Pesci, este com nuances assustadoramente poderosas e aquele se divertindo como nunca, estão entre os grandes momentos do cinema recente.
O Irlandês deve sair consagrado pela Academia ou em qualquer outro evento do tipo. É uma aula magna de seu realizador, um documento sobre o que é cinema, com C maiúsculo, sua história e seus símbolos (dos religiosos aos alimentos) culturais, tão importantes para Scorsese quanto para a própria humanidade. No fim de tudo há o luto, a morte, e talvez uma porta entreaberta para uma esperança que, sabemos, não vem e não virá.
Avaliação: Excelente