Policial civil dirige documentário que mostra África do Sul quase 30 anos pós-Apartheid

 em artes, cinema e tv, política

Um policial civil que vive a guerra contra as drogas no Rio, em que o enfrentamento armado é a política adotada, foi até à África do Sul entender como está hoje a população no país que viveu o Apartheid, regime de segregação racial que durou mais de 40 anos. Na nação que é berço da humanidade, ele ouviu quem ainda sofre diariamente com o racismo e a desigualdade social, onde a minoria é a dona da maior parte da riqueza, uma realidade nada diferente do Brasil. O resultado é o documentário “Logo Ali”, que busca em um financiamento coletivo arrecadar recursos para estrear no mês do centenário de Nelson Mandela, líder da luta contra a o regime racista.

O filme [trailer no final do texto], que tem a direção do inspetor da Polícia Civil Roberto Chaves de Almeida, conhecido como Beto Chaves, e do designer Leo Santos, mostra como a população busca virar a página da segregação oficializada vivida no país através da arte, cultura, educação, esporte e empreendedorismo. Uma das grandes dificuldades é a sombra do racismo que ainda paira na África do Sul pós-apartheid e a desigualdade resultante dela. Entretanto, Chaves acredita que a transformação está em andamento e é necessário respeitar as suas etapas.

“O que ficou bacana de mostrar é que há processos, que a gente às vezes não respeita. Devemos ter maturidade de entender que se o processo está em andamento, estamos ganhando. O que não podemos é retroceder, mas se está caminhando temos que potencializar este processo”, explicou.

Na favela de Langa, na Cidade do Cabo, cabeças de cabra são assadas direto no fogo, limpas, abertas e vendidas como refeição para a população pobre (Divulgação)

O exemplo desse processo é retratado no filme, quando após uma refeição em uma fazenda na região onde Mandela nasceu, um homem branco diz que não levaria um negro para jantar em sua casa. Entretanto, ele admite que o seu filho já brinca com negros naturalmente e sem preconceitos. Apesar da carga racista que ele ainda carrega, herdada do pai, permite que o filho tenha outra possibilidade, outro caminho. “É uma quebra gigante do conceito”, conta o policial.

O documentário entrevista quase 40 pessoas e tem os dois lados da moeda: a África do Sul branca, dona da riqueza e detentora de grande parte do país; e os negros, moradores dastownships,habitações humildes nas periferias do país criadas para segregar territorialmente os negros durante o Apartheid. Nos dois lados, o sentimento é de que muita coisa ainda precisa ser feita. No lado mais favorecido da história, resquícios da política racista ainda persistem.  

A mensagem que fica é que o racismo ainda perdura na África do Sul quase três décadas após o fim do Apartheid e que é necessário avanços culturais, a diminuição da desigualdade e também é destacada a importância da arte e do empreendedorismo na construção de dias melhores para os sul-africanos. Neste processo, o jovem é visto como uma fonte de esperança num futuro melhor.

“É uma história de pessoas, de heróis anônimos, tem a linha do Apartheid, mas não é só isso. Ele mostra a riqueza escondida no meio de todos nós”, reflete Chaves. Ele também compara o país sul-africano com o Brasil.

Beto Chaves jogou bola e conversou com jovens em Joanesburgo. Promessa de novos tempos através deles (Divulgação)

“A África do Sul e nós somos muito parecidos em nossas mazelas e riquezas. A sombra do Apartheid ainda existe, é tudo muito novo. O regime começa em 1948 e acaba em 1990. Olha para o Brasil, tudo o que aconteceu, a nossa constituição da República tem 30 anos. É muito pouco tempo para dizer que a questão do racismo está resolvida. A nossa democracia aqui é jovem, lá também”, compara.

A cultura do país com 11 línguas oficiais das várias etnias também reforça a riqueza do país. O documentário tem o seu “happy end” no momento em que branco e negro se unem através da arte. O encontro provocado pelo policial Beto Chaves, que narra o documentário, junta dois mundos distantes, apesar de estarem separados apenas por poucas ruas.

“Esse ‘happy end’, como você fala, talvez tenha sido o resultado de toda a boa conspiração que geramos na realização do filme. Aconteceu de forma muito natural e retrata o nosso desejo. E a arte é o grande vetor do nosso filme”, declara o diretor.

Kamunya, imigrante queniano que foi tentar a vida na África do Sul e virou empresário. Ele nunca tinha visto um branco na vida antes de chegar na terra de Mandela (Divulgação)

‘Em um país não muito longe daqui’

O nome “Logo Ali” é uma metáfora do espaço e tempo que une e separa a humanidade, além de se referir às datas de início do Aparthaeid, prisão de Mandela, fim do regime e a morte do líder que lutou contra a segregação.

“A África do Sul de Mandela me ensinou que é preciso virar a página manchada da história, desde que nós abaixemos as armas para darmos as mãos”, diz Beto Chaves na parte final do documentário. O discurso pode ser adotado ao Rio de Janeiro, que também tem a sua guerra particular. Nela, negros e pobres também são os principais alvos.

“Os bons exemplos estão aí. Estão em Japeri,  em São Gonçalo, no Vidigal, na Rocinha, Alemão, Búzios, em Campos, no Sul Fluminense, nas cidades do interior. O desafio que se tem é enxergar. Quando olhamos o cenário de segurança pública, a resposta existe em uma possibilidade maior do que a ação do policia. A resposta reside num lugar muito maior do que a atuação do policial”, acredita o inspetor da Polícia Civil.

Crianças em Joanesburgo. Beto Chaves aponta a educação, cultura e políticas sociais como saídas para os problemas não só da África do Sul, mas também do Brasil (Divulgação)

A conversa inevitavelmente caminha para o assunto da intervenção federal que acontece no Rio de Janeiro. Apesar de dizer que “é o momento do estado ser forte”, ele reconhece que só a guerra através das armas não é a solução para uma sociedade melhor e menos desigual.

“Chamaram o Exército, precisamos de uma chegada mais forte. Mas vai resolver? Não, não resolve. O que resolve é investimento a longo prazo na educação, cultura, no social, no que chamamos de bem-estar social. E exterminar a corrupção vigente. Precisamos da força, neste momento, mas o estado só está se apresentando com a força, infelizmente. Isso é só um paliativo”, admite.

O inspetor da Polícia Civil fala com propriedade. Beto Chaves é o criador do programa “Papo de Responsa”, em que a arma principal é o diálogo entre polícia e jovens. Pensando na contramão da política de enfrentamento usada nas favelas do Rio, o policial viu no “desenrolo” a chave para se relacionar com a juventude e falar sobre temas comoprevenção às drogas, violência e o papel do policial na sociedade

“É um programa de aproximação das pessoas com as pessoas. É sobre relacionamento humano. É isso que fazemos todos os dias”, diz no filme. O programa Papo de Responsa já atingiu mais de 400 mil pessoas e foi expandido para os estados do Espírito Santo e Rio Grande do Sul. O projeto virou referência e Beto Chaves viajou para o Brasil e exterior, mostrando que é possível romper estereótipos e vencer o preconceito.   

Financiamento coletivo para lançar documentário

Com as dificuldades existentes para quem faz cinema no país, os realizadores do documentário tentam levantar recursos de forma coletiva para divulgá-lo e levá-lo aos cinemas e festivais do Brasil e do mundo.

“O mais bacana foi a ação de realizar, mas tem o mérito de ele estar pronto e disponível para as pessoas. Realizar é difícil, mas realizar cultura é muito mais difícil, ainda mais em nosso país. Documentário é meio marginal, não tem a grande audiência, é mais difícil captar recurso, carece um pouco disso, da necessidade de formar público”, disse ao explicar que a ideia de fazer o filme com o designer Léo Santos “foi uma grande boa conspiração do universo.”

O dinheiro arrecadado será usado para levar o documentário aos cinemas, além de produzir material gráfico, divulgação online, assessoria de imprensa, palestras em escolas públicas e universidades, inscrições e participações em festivais de cinema. Mas a principal meta é garantir presença no Festival de Durban, na África do Sul, na mesma data em que comemora-se o centenário de Nelson Mandela, no dia 18 de julho.

As recompensas para quem ajudar vão desde o nome nos créditos finais do documentário, acesso online ao filme em primeira mão, até convites para a pré-estreia, variando de R$ 25 a R$ 250. Até esta sexta-feira, a campanha tinha arrecadado mais de R$ 7 mil, mas a meta é chegar aos R$ 70 mil até o dia 6 de abril. Para colaborar e fazer parte deste projeto, basta acessarhttp://www.querovernocinema.com/

ASSISTA AO TRAILER DO DOCUMENTÁRIO ‘LOGO ALI’

Comece a digitar e pressione Enter para pesquisar