Technoboss – Entrevista com o diretor João Nicolau e resenha do filme

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Era uma segunda-feira chuvosa quando encontrei o diretor português João Nicolau em Botafogo, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Duas horas antes, assisti ao seu filme mais recente, o bonito Technoboss, com o ótimo estreante Miguel Lobo Antunes. A produção conta a história de Luis Rovisco, diretor comercial de uma companhia de tecnologia, que pensa em se aposentar e lida com suas próprias limitações às novidades de sua empresa. No meio do caminho, literalmente, canta sobre situações em que vive.

De férias pela cidade, o cineasta falou com a Pitaya Cultural sobre como a música é primordial em Technoboss, suas influências, o amor pela obra de Tom Zé e o que alimenta o seu trabalho.

Como você chegou ao Miguel para o papel?

João Nicolau – Foi, sem dúvida, o momento mais marcante do filme, ter encontrado o Miguel para fazê-lo, ao longo das várias versões do roteiro. Foi um tour de force com o personagem. Eu e minha equipe queríamos alguém profissional. Nos meus filmes anteriores eu usei atores não-profissionais e profissionais e, neste caso, eu achava que precisávamos de alguém com experiência. Fizemos um casting (seleção de elenco) muito grande em Lisboa, com vários atores daquela faixa etária, com pessoas dos 55 aos 70 anos, muitos deles cantores. Tinham duas ou três boas opções, mas eu não estava ainda suficientemente apaixonado para começar o filme.

Nesse período, estava em uma festa e, por acaso, vi o Miguel. Ele estava dançando, falando com as pessoas e cantando. Não pensei nele imediatamente, mas a imagem ficou comigo e pensei: ‘por quê não?’. A partir daí, peguei o contato dele, almoçamos e o convenci a fazer o teste. No teste, ele conseguiu trazer algumas coisas do Luis Rovisco que vi pela primeira vez. O Miguel não tinha nada a perder, uma vez que ele não era ator profissional e tinha acabado de se aposentar. Ao mesmo tempo, ele veio muito bem preparado e conquistou a mim e minha equipe. Em uma segunda fase, repetiu o feito e pronto.

E como foi pra ele esse processo todo, já que ele estava estreando em um filme?

Eu gosto muito de ensaiar e o Miguel também. Para mim, cada vez mais, os ensaios são um dos momentos mais proveitosos na realização de um filme. São momentos onde nós podemos errar, onde temos tempo, sem limite de horário. E o ensaio foi em um teatro, com sala vazia. Eu e o ator vamos descobrindo coisas do personagem. Então, foram dois meses, dois meses e meio de muito trabalho. Também ensaiamos com um dos produtores um trabalho específico com as canções. Tudo foi um trabalho muito cotidiano, todos os dias. E tudo correu bem, eu gosto de trabalhar dessa maneira e pro Miguel foi bom também.

Tirando o Miguel, todos os atores são profissionais?

São. Nos papéis principais, são. Todos do escritório são. A Luísa (Cruz) que faz a Lucinda é, entre outros Os músicos do filme não são atores profissionais, mas são músicos profissionais.

Falando das músicas, são todas originais, tirando ‘Asereje’. Como se deu esse processo? Você se envolveu, ajudou nas escolhas?

Não, este filme teve várias versões antes de ter a forma final, eu tinha escrito algo antes do meu filme anterior, tivemos ouras versões no roteiro com a Mariana (Ricardo, co-roteirista com João Nicolau) e com os músicos. Eu convidei o Norberto Lobo e Pedro da Silva Martins, que são dois compositores de áreas distintas, porque achei que precisavam se embrenhar em algo diferente do que eles fazem em seus projetos. Depois veio o Luis (José Martins), que tinha a função de diretor musical, mas que acabou ajudando nas composições também. O trabalho foi um pingue-pongue.

Eu apresentei a minha primeira versão para eles e tinha todas as letras das canções escritas. Dei mais indicações do que se passavam nas cenas. Então, fizemos duas residências que duraram dois anos e em conjunto fomos descobrindo qual era a matéria musical do filme, tanto que há cenas que foram inventadas pelos músicos. Na cena em que Rovisco chega ao hotel, há um grupo de cantores alentejanos. Aquela música foi ideia deles. Outro momento, que acho muito terno, é quando o personagem volta para a Lisboa e canta para uma máquina de pedágio. Essa cena acaba casando com uma subtrama do filme.

Qual a sua relação com a música?

É boa! (risos) Antes de fazer filmes, eu toquei como músico amador, tive bandas amadoras. Não tenho formação musical, mas há algo da música em mim mais até que o cinema. Cotidianamente. Por exemplo, estou aqui no Rio há alguns dias e já fui em alguns shows, não fui ver um filme, e também quero comprar discos. Então, sempre tenho projetos pequenos que também participo. Nos meus outros filmes, algumas músicas são minhas. Desta vez, queria oferecer o trabalho a outras pessoas e acho que foi uma boa opção.

Você e os produtores chegaram em um consenso sobre as músicas de Technoboss?

Na primeira versão do roteiro eu tinha indicado mais ou menos o espírito dessa canção. Não necessariamente a estética, algumas vezes sim, mas mais o espírito da canção. Tal como em John From, meu longa anterior, eu não queria uma trilha sonora de assinatura. Eu gosto mais de trabalhar a música a serviço de cada cena específica. É verificar cada situação/ação que se passa ou estado de espírito do personagem. Por isso também convidei duas pessoas e depois foram três. A luta foi mais ter uma unidade com tantos gêneros diferentes que passam através da instrumentação, letra e também da maneira como é filmado.

Você mencionou que assistiu shows no Rio. Quais?

Fui ver o do Rubinho Jacobina. Ele é muito bom. Fiquei muito ansioso porque queria vê-lo, já vi também em Portugal. Conhecia o primeiro disco.

E quais artistas brasileiros você conhece?

Bom, um muito marcante para mim, um músico que mais me inspira e me faz identificar com suas visões de mundo é o Tom Zé. Foi uma descoberta tardia da Europa, portanto para mim, também. Mas felizmente já o conheço sua obra há mais de 20 anos. Gosto muito do Hermeto Paschoal e também tenho um grande carinho pelo Paulinho da Viola. Tem o Caetano Veloso e Chico Buarque, que são da geração dos meus pais, mas que sempre acompanho pelo valor nobre. De coisas mais novas, gosto muito do trabalho do Rubinho e do Kiko Dinucci.

Sobre as influências brasileiras no cinema? Você tem, acompanha?

Olha, acompanho pela música. Quase não chega em Portugal. Nos últimos anos, uma distribuidora ligada a um festival luso-brasileiro que tem em Santa Maria da Feira, tem alguns filmes, produções independentes. Trabalhei no roteiro do (cineasta carioca) Felipe Bragança, Um Homem Amarelo, que me convidou para escrever há algum tempo. Mas que em relação ao cinema, não tenho uma identificação tão forte. É uma coisa que chega muito estilhaçada. Confesso que desconheço a história do cinema brasileiro, mas tem coisas que chegam como os filmes do (Eduardo) Coutinho, do Júlio Bressane. Me interessa saber mais.

E quais as suas influências no cinema?

Há autores que eu gosto. No entanto, curiosamente, o cinema não alimenta o meu cinema. Quando comecei a querer dirigir em Portugal, meus primeiros projetos eram documentários, mas não tive apoio. Trabalhei muito como montador, depois lancei meu curta de ficção. As minhas referências e nem minha base são muito sólidas em termo de cinematografia. Claro, há sempre autores com quem nos identificamos, em fases importantes da nossa vida. No caso, João César Monteiro, uma referência para mim e não só minha, tem o Manoel de Oliveira também. No cinema contemporâneo tem os filmes do (cineasta argentino) Lisandro Alonso.

Algum filme recente que você recomenda?

Sim, eu não sei se vai chegar aqui porque é uma produção pequena, suíça, do Sérgio da Costa e Maya Koza. Se chama Ilha dos Pássaros. Foi o melhor filme que vi no ano passado. É um filme muito minimal, sem perder a força que o cinema tem.

Voltando ao Technoboss, há algumas subtramas e um caminho surpreendente. Fale sobre isso

É uma das contradições que comentei em outras sessões com a imprensa. Primeiro seria uma tour de force de um personagem que tem um ocaso profissional. Depois, um filme que tem carros mas não é um road movie, que tem músicas mas não é um musical. Para mim, mais do que isso, filmar o personagem no presente é mais importante. No fundo, é uma história de amor. É um percurso do personagem, uma reflexão sobre os espaços físicos e sociais de Portugal também. Eu acho que também é político e um ato de liberdade filmar uma história de amor.

Nos teus filmes, há muitas brincadeiras com o que é surreal. Em certos momentos, me perguntei o quanto daquilo era proposital. Era ou havia alguma restrição orçamentária?

Na verdade foi meio a meio. Eu cheguei a uma altura, em determinado momento do filme, que a complexidade do trabalho do Miguel no filme permitia ter uma outra lente na maneira do olhar. Isso podia ser uma solução que mexia com o espaço físico. Filmar em uma autoestrada é muito caro e demora muito tempo. São muitos dias para filmar segundos, às vezes um minuto. A logística é grande. Depois, vem a parte de fazer cinema. Tiveram as cenas com as canções…e depois tivemos que gravar no estúdio. Há outras situações que seriam mais fáceis filmar em locações reais, mas começamos a fazer esse jogo de várias realidades. O cinema é uma ferramenta ótima para colocar no mesmo nível coisas que tendemos a separar.  Gosto de desafiar o cinema nesses aspectos.

Você planeja lançar a trilha sonora do filme?

Gostaríamos muito de lançar, talvez o façamos em Portugal quando lançarmos a edição em DVD. Vai exigir uma outra mixagem da maior parte das canções, porque uma coisa é a canção existir no filme, outra é existir por si só, então tem uma adaptação a ser feita. Espero que em breve lancemos o disco Technoboss também.

Technoboss – Crítica

Quando Technoboss começa, Luís Rovisco (Miguel Lobo Antunes) se vê admirando uma autoestrada após um problema em seu carro. Não parece à primeira vista, mas aí está um dos pontos que o diretor João Nicolau gosta de brincar de usar em seus filmes: a linguagem do próprio audiovisual, o parece mas não é (e acaba sendo). Incapaz de adaptar-se a um mundo cada vez mais dependente da tecnologia, Rovisco sofre em seu próprio ambiente de trabalho com as pressões de seu colega Teixeira (Américo Felix, ótimo) por resultados ou para não cometer erros que prejudiquem a empresa.

A relação do homem com a tecnologia é apenas uma das subtramas da produção. Technoboss parece um musical que fala sobre a vida de um senhor sexagenário em vias de se aposentar? Não só e tudo obviamente é político nos planos, até a belíssima cena final. Espertamente, a construção se dá junto às canções como ferramenta narrativa potente, que tanto transformam as próprias faixas de várias maneiras — a abordagem por vezes naturalista ou amadora das ‘esquetes’ — como interferem no andamento da narrativa, sem prejudicá-la. Nesse sentido, assim como em seus outros filmes, o cineasta português também usa elementos do surrealismo para a fluência da história.

As atuações impressionam, principalmente do estreante Antunes, que consegue imprimir diversas camadas em momentos que vão da ternura com seu neto à delicada relação com o filho. Se Rovisco se recusa a aceitar que está ultrapassado para exercer suas funções, tudo é mostrado com a devida melancolia, ou alegria evidente nos momentos mais catárticos. Quando, passado mais de 1/3 da película, ele encontra uma pessoa familiar de seu passado, as chaves novamente se invertem. O espaço privado onde refletia sobre suas verdades, preocupações, alegrias e tristezas se torna parte da realidade.

Há momentos preciosos, como o encontro com os cantores alentejanos, ou uma banda de metal invadindo a imaginação de Luis, ou ainda sua discussão com Teixeira no carro, em um improvável hit que pode ficar na sua cabeça. Tudo pode parecer um pouco excêntrico, assim como as piadas ou as situações que se assemelham a um sonho, mas não à toa. As pílulas exibidas por João Nicolau compõem um mosaico de vários significados, alguns deles ficam com o espectador após a exibição. Como revés, há uma queda de ritmo do meio para o final, que poderia ser resolvida encurtando 10 minutos.

Como material novo do diretor, Technoboss sobressai por suas qualidades mas, mais importante, abraça seus temas de forma mais concisa. O resultado é exame bonito sobre o processo de envelhecer e descobrir que, na verdade, ter quem amar e desenvolver um olhar mais aberto sobre várias questões do mundo pode ser uma boa maneira de ser feliz.

Avaliação: Muito bom

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