Twin Peaks: O Retorno é o filme seriado sobre nossos tempos

 em cinema e tv, séries, televisão

Antes de Arquivo X, Lost, The Sopranos, The Wire e Breaking Bad, para citar séries que marcaram a cultura pop e ajudaram a marcar as chamadas ‘eras de ouro’ da televisão, havia Twin Peaks. A série estreou em abril de 1990 e teve uma segunda temporada em 1991, sendo cancelada em seguida por quedas na audiência e “diferenças criativas” entre os criadores David Lynch e Mark Frost. A trama narra a busca do agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) pelos assassinos da jovem Laura Palmer (Sheryl Lee) na fictícia Twin Peaks, em Washington. Por seus personagens muitíssimo bem escritos e conteúdo que mesclava mistério, horror, surrealismo (marca do cinema de Lynch) e humor, o seriado se tornou cultuado por fãs nos anos seguintes. Em 1992, o filme Twin Peaks: Fire Walk With Me (Os Últimos Dias de Laura Palmer, como foi traduzido por aqui), cujos eventos se passam antes das duas temporadas televisivas, ajudou a aumentar o culto em torno da série ao ampliar sua mitologia.

Vinte e cinco anos depois, na era do streaming, Frost e Lynch anunciaram 18 novos episódios e a batizaram a empreitada simplesmente de Twin Peaks: The Return (O Retorno). Escrita no curso dos anos pela dupla que, desta vez, teve seus papeis bem demarcados (Lynch escreveu, atuou e dirigiu, Frost escreveu), o filme mostra a jornada do agente Cooper de volta à cidade e seus mistérios. Mas…um filme? Sim, Twin Peaks: O Retorno é um longa de 18 horas. No ano passado, duas das mais prestigiosas revistas de cinema colocaram a produção como melhor filme e segundo melhor filme em suas listas. E não é exagero: Twin Peaks transpõe as barreiras do que se entende por televisão e cinema. A nova temporada, em exibição no Netflix, foi o acontecimento cultural de 2017 e Pitaya Cultural recomenda.

É preciso assistir às duas temporadas antes de embarcar em O Retorno? Não. Eu não assisti até hoje, mesmo sabendo que a experiência seria mais completa por, certamente, aprimorar laços com os personagens. Isto porque o filme basicamente renega ou ressignifica tudo que veio antes, a começar pela estrutura episódica deixando para trás a forte influência de novelas americanas, marca do início dos anos 90. Lynch e Frost construíram um novo jeito de contar histórias, subvertendo expectativas em cada uma das partes.

Sem respostas e a lógica do absurdo

É preciso alertar queTwin Peaks não trata de dar respostas a perguntas ou buscar resoluções satisfatórias, mas faz um panorama do estado de coisas de nossa sociedade sob a lógica do absurdo. Ainda que retrate a decadência nos Estados Unidos, seja por meio da pobreza, violência, preconceito, radicalismo, insanidade, consumismo ou o avanço do fascismo em escala assustadora, tais temas são universais. A crítica à nostalgia e à forma como se faz e consome arte também marcam o filme, dentro do contexto da própria série. Explicar qualquer parte estragaria a surpresa, já que cada um interpreta como bem entende o que é apresentado.

Como todo bom autor de cinema, David Lynch brinca e instiga os espectadores. Particularmente a parte 8, com o subtítulo de ‘Tem fogo?’ é algo que nunca foi feito na televisão ou no cinema, sem paralelos (talvez, em parte, relembrando o fim de 2001: Uma Odisseia no Espaço) em termos de narrativa e experimentalismo. O estica e puxa continua e, quando você acha que está entendendo tudo no penúltimo episódio, a última parte desmonta bases e deixa poucos resquícios de entendimento, mas de muita fruição. Pode-se assistir de novo (e de novo) e, ainda assim, há muitas camadas e referências no ar, que vão de Hitchcock aO Mágico de Oz, o filme preferido do diretor.

A dualidade é uma marca de Twin Peaks, o nome já entrega. Por trás da história central do agente Cooper, há pequenas histórias paralelas destinadas a provocar reflexão e angústia, que ligam ficção e realidade. Lynch e Frost não entregam tudo de mão beijada, existe um senso de conexão mais profundo que se quer estabelecer com o espectador, de grandeza e completude mesmo que amarrando poucas pontas e soltando duas vezes mais. Há alegorias à religião, bem e mal, verdades e mentiras, sonhos e pesadelos, convergindo para a decadência da raça humana. Os realizadores parecem nos perguntar: nos transformamos nisso e esse é o mundo que queremos? O que queremos, afinal?

Talvez a resposta pouco importe, mas a experiência ou a jornada é o que contam. Twin Peaks: O Retorno não tem a pretensão de ser o retrato definitivo sobre a humanidade, mas radiografa como nenhuma outra forma de arte o nosso tempo.

Avaliação: Excelente

Onde assistir: Netflix

 

 

Comece a digitar e pressione Enter para pesquisar