Entrevista: ‘Literatura é diversão’, afirma Carlos Eduardo Pereira, autor de ‘Enquanto os Dentes’
Um dos destaques literários de 2017, o livro “Enquanto os Dentes” (editora Todavia) coloca em pauta as precariedades da acessibilidade no Brasil. O primeiro romance do escritor Carlos Eduardo Pereira conta a história do cadeirante Antônio, que desiste de viver sozinho no Rio de Janeiro e decide voltar a morar com os pais em Niterói. A trama simples se torna intensa ao ser contada sob o ponto de vista do personagem, que “passou a ver tudo por baixo”.
Assim como Antônio na ficção, o autor também é cadeirante. Em entrevista ao Sapoti Cultural, Carlos Eduardo conta que utilizou suas experiências para escrever o livro, mas nada do que foi descrito no romance aconteceu de fato. O escritor afirma que as condições de acessibilidade no país melhoraram nos últimos anos, principalmente em restaurantes, lojas e ônibus. Para ele, é preciso melhorar as calçadas do Rio, que ainda são muito esburacadas e não têm rebaixamentos perto das faixas de pedestre, e ocorrer uma mudança de comportamento das pessoas, que não respeitam o espaço dos cadeirantes.
1) Vamos começar por umas perguntas básicas. Como e quando começou a sua relação com a literatura? O que a literatura significa pra você?
Na minha infância, a gente não tinha muitos livros em casa. Mas tinha televisão. Os primeiros livros que me lembro de escolher por vontade própria, não sei com que idade, foram aqueles ligados ao universo dos filmes. Os livros que inspiraram O Exorcista, O Poderoso Chefão, O Iluminado. Literatura é diversão. Muito por isso, nos últimos anos, tenho dedicado grande parte do meu tempo e energia a criar uma bagagem de leitura, então tento alternar a leitura de um clássico com um contemporâneo, de um brasileiro com um gringo, de poesia com prosa.
2) Como foi o processo de escrita deste livro? Quando você começou a escrevê-lo?
Em meados de 2015, fiz parte de um grupo de estudos sobre aspectos do romance, que a [escritora] Carola Saavedra manteve por um tempo no Rio. Era um grupo pequeno, formado por escritores iniciantes, ex-alunos da Carola em oficinas que ela costuma oferecer, cada qual com seu projeto debaixo do braço. O Enquanto os dentes era um deles, começou a ser escrito ali. A Carola trazia para a mesa alguma discussão sobre o Dom Quixote, ou sobre o Tristram Shandy, numa primeira metade dos encontros. Na outra metade comentávamos sobre o material produzido por cada um na semana.
3) O seu romance ‘Enquanto os dentes’ coloca em pauta a falta de acessibilidade no Brasil. O que ainda falta melhorar neste quesito no país?
Olha, desde que eu fiquei cadeirante as condições de acessibilidade melhoraram bastante. Claro que não estamos na Suíça, no Canadá, mas dá para enxergar melhoras sim. No pedaço do Rio de Janeiro por onde eu costumo circular as calçadas ainda são esburacadas, quase nenhuma rua tem rebaixamento em ambos os lados na hora de atravessar, no entanto os condomínios estão se adequando, os restaurantes, os ônibus, as lojas de rua. O problema de verdade está na postura de algumas pessoas. Infelizmente, ainda se vê parte da população que não tem dificuldades de locomoção estacionando seus carros nas vagas exclusivas, utilizando os elevadores das estações de metrô, usando indevidamente os acessos preferenciais. As maiores dificuldades estão mais ligadas a uma barreira, que temos todos, atravancando as relações interpessoais do que ligadas a uma questão de administração pública.
4) Você é cadeirante desde 2010, certo? Você já sofreu (ou ainda sofre) algum tipo de preconceito? Como os cadeirantes são tratados no Brasil?
Isso, 2010, mas é um pouco como eu disse na pergunta anterior: me incomoda muito quando vejo dez, quinze pessoas de pé bem em cima de uma placa azul enorme no chão, com o símbolo de acessibilidade desenhado, todas fazendo questão de não olhar para trás, se acotovelando preocupados em conseguir um lugar sentado no próximo vagão do metrô. Nem é uma questão de preconceito, não me lembro de alguma ocasião em que tenha me sentido desconfortável especificamente devido a minha condição de cadeirante, mas um problema de educação e respeito, a sensação é a de que a gente anda com pouca disposição para olhar para os lados e prestar atenção nas necessidades do outro.
5) De que forma suas experiências ajudaram a enriquecer a história do romance? O que é ficção e o que é realidade no romance?
Tudo é ficção no Enquanto os dentes, nada daquilo aconteceu. E as minhas experiências pessoais contribuíram para a realização do romance da mesma forma como sempre ocorre com qualquer autor quando pretende escrever sobre qualquer assunto. A gente traz nossa memória de leituras, de encontros pela vida, e trabalha procurando construir uma trama que faça sentido.
6) Algum motivo especial para estrear na literatura com um livro no qual você apresenta um personagem cadeirante? Por que essa escolha? Podemos dizer que é um romance de autoficção?
Calhou de o Enquanto os dentes, que apresenta esse personagem cadeirante, ser meu primeiro livro publicado. Já venho escrevendo faz algum tempo, sobre outros assuntos, com outros personagens, em outros gêneros literários. A gente que escreve não controla o que vai ou não vai conseguir publicar. No caso desse romance eu queria explorar as possibilidades de um movimento de retorno forçado, queria falar de tentativas e retomadas. Para isso, entendi que um personagem com deficiências poderia me servir muito bem como alegoria. Alguém que circula por calçadas esburacadas, que topa com trechos de ruas em obras e precisa contornar uns cones para seguir em frente, alguém que vaga por um dia em que não para de chover. Tudo são símbolos.
7) Falando um pouco sobre literatura contemporânea… Como você analisa o cenário atual da literatura contemporânea brasileira? O que precisa melhorar?
Vejo um cenário com muitas possibilidades. Ao mesmo tempo em que é preciso disputar atenção com as inúmeras alternativas do audiovisual, a internet, por exemplo, hoje oferece caminhos que até ontem não havia. Tem muita gente produzindo muita coisa boa, a gente consegue acompanhar os trabalhos de quem escreve em todo canto. Mas há muito espaço para melhorar, claro, sempre há. Existem, no Rio, diversas iniciativas em torno da escrita, o que falta, me parece, é uma articulação presencial maior da cena, já que estamos geograficamente mais próximos. Penso que faria muito bem, nesse contexto, um intercâmbio mais intenso. Aposto sempre na troca de experiências para que a literatura possa circular mais, e tocar mais.
8) Algum projeto literário novo que a gente possa divulgar? Qual?
Eu escrevo todos os dias, e, no momento, estou numas cabeçadas em torno de um novo romance. Vamos ver.