Escritora que narra drama das vítimas do nazismo alerta para fanatismo no Brasil e busca por ‘salvador’
Formada em Direito pela PUC de São Paulo, a empresária Maura Palumbo é o que chamamos de uma historiadora por vocação. Ela se especializou em Segunda Guerra Mundial durante os quase 10 anos dedicados às leituras de pesquisas, documentos históricos e biografias de líderes envolvidos na guerra. O nazismo foi o tema que ela mais se aprofundou e pelo qual se interessou ainda na adolescência, após ler “O Diário de Anne Frank”, livro que emociona e inspira gerações [incluindo o autor deste texto].
O resultado desta paixão resultou em dois livros, lançados em 2017, fora convites para palestrar em universidades, escolas e centros culturais. No romance histórico “O Perfume das Tulipas”, Palumbo conta a história de Helga e sua família, judeus alemães que passam a ser perseguidos pelos nazistas e mostra a luta deles pela vida em meio à fuga, campo de concentração e mortes. Misturando fatos reais com ficção, o livro toca com sua narrativa que sintetiza a esperança, a união e o amor.
Já em “Auschwitz, prisioneiro/sobrevivente 186650”, a escritora narra a luta pela vida de Francisco Balkanyi, sobrevivente do campo de concentração mais temido, localizado na Polônia. Hoje com noventa anos e morando em São Paulo de 1971, Balkanyi escolheu a autora para colocar no papel sua história de superação e deixar o alerta para que a história não se repita, evitando que as novas gerações não se deixem levar por doutrinas que conduzam ao fanatismo.
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Aliás, Palumbo sempre repete que a “Segunda Guerra” não acabou. Um de seus sintomas mais evidentes é a onda de pensamentos conservadores e os discursos de ódio disseminados atualmente pelo mundo, inclusive no Brasil. O que parecia camuflado ganhou mais voz e tem sua maior vitrine nas redes sociais. Num bate-papo com o Pitaya Cultural, a escritora conta um pouco de sua história, obras e dá o recado para ficarmos atentos aos movimentos que se inspiram em regimes autoritários e se aproveitam da instabilidade política que paira em nosso país para ganhar adeptos.
1 – Você é formada em Direito, mas hoje se dedica a contar histórias de sobreviventes dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Quando começou o interesse por este tema?
A leitura sempre foi muito presente em minha vida. Em casa tínhamos uma biblioteca muito variada e fui apresentada a grandes autores e suas excelentes obras quando ainda era muito jovem. Ao ler o Diário de Anne Frank houve um envolvimento imediato. Na época eu tinha a mesma idade da protagonista e isso facilitou minha identificação com ela. Passei e me transportar para aquele período sombrio de privações onde aquela adolescente foi obrigada a se esconder durante quase dois anos. A partir daí, minha conexão com a Segunda Guerra foi crescente.
2 – Você trabalha no Museu do Holocausto, em São Paulo, e dá palestras sobre o assunto Segunda Guerra Mundial. Conte um pouco sobre estas experiências?
É necessário que as questões que levaram a um “delírio coletivo” de uma nação sejam discutidas, como um alerta. Não podemos fugir da História. Por mais que esta tragédia tenha marcado e aniquilado vidas, ela deve ser compartilhada. Não há como desprezar uma catástrofe dessas. Precisamos falar sobre. Nada pode ser mais revoltante que a dor do sofrimento em silêncio.
3 – “O Perfume das Tulipas” fala de duas famílias de Berlim, uma delas judia. Com a explosão do nazismo, elas ficam em lados opostos. Qual a mensagem que se busca com a história de Helga, sua família e as tulipas?
A trajetória de Helga é a de milhões de judeus que conheceram o inferno. A transformação da Alemanha foi um crime premeditado. Um planejamento sórdido que evoluiu em uma matança em larga escala. O nazismo nasceu dentro de um sentimento de vingança e de extermínio. Os judeus da Alemanha estavam completamente integrados no país que nasceram e nunca puderam imaginar que uma política fosse capaz de se conduzir e de se manter pela violência. Nesse cenário de horror tudo é colocado à prova.
Até que ponto resiste a cumplicidade de uma amizade? Até que ponto somos capazes de sobreviver? Qual a transformação pessoal e coletiva diante a uma realidade de perversidade? Neste contexto brutal, de conflitos e desencontros, as tulipas têm um papel fundamental. Elas fazem parte do encantamento da história. O grande desafio e mistério em descobrir seu aroma… O perfume das tulipas é a forma que encontrei para manifestar minha lealdade a uma dor mundial.
4 – O livro terá continuação, não é? Dá para adiantar algo?
O Perfume das Tulipastermina exatamente em 1945, com o final da guerra.Entre os Canteiros(título da continuação deO Perfume) retrata a batalha devastadora do pós-guerra. Todos tinham marcas profundas de sofrimento e de perdas irreparáveis O árduo caminho da reconstrução pelos sobreviventes teve um preço alto. Não havia lugar para se retornar, o mundo e as pessoas nunca mais seriam os mesmos.Entre os Canteirosé a luta para juntar os “cacos”, de se avaliar o que restou e de superar ou não uma tragédia incalculável. Posso garantir que o enredo é repleto de emoções e de grandes revelações.
5 – Como você chegou até a história de Francisco Balkanyi, personagem central de “Auschwitz, prisioneiro/sobrevivente 186650”, que vive no Brasil? Qual o aprendizado que fica com a sua história de sobrevivência?
Ao ouvir um trecho da entrevista de Francisco Balkanyi àBBC Brasilno Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, vi surgir minha chance de conhecer um sobrevivente de Auschwitz e de compartilhar sua história da melhor maneira que eu conheço: escrevendo. Candidatei-me a ser a escritora de sua história e fui selecionada por ele. Confesso que foi a grande oportunidade da minha vida.
Balkanyi é inspiração de vida, sem a pretensão de ser um herói. Ele é uma das testemunhas que se determinou a ter um propósito de vida: ser feliz. Para mim, este encontro foi uma premiação. Nunca aprendi tanto e de uma forma tão emocionante e humana. Ele faz parte da minha vida de uma forma única e grandiosa. O aprendizado é incalculável.
6 – O que mais te marcou nas histórias que leu sobre as vítimas do holocausto?
A perda total da identidade. As etapas deploráveis da destruição da dignidade me abalaram profundamente. O sadismo de quem subjulgava é perturbador. A violência nos rituais são tenebrosos. A descaracterização do ser humano é absolutamente deplorável. A gradativa e massacrante tortura reduziu vidas literalmente a cinzas.
7 – Vivemos uma onda de ódio e conservadorismo no nosso país. Estas ações são resquícios ainda dos regimes nazista e fascista, por exemplo?
Infelizmente o mal é uma herança que fica impregnada em qualquer um que esteja disposto a executá-lo. A responsabilidade pessoal deve se sobrepor à coletiva. Não é o conservadorismo ou a anarquia que moldará os cidadãos, mas suas convicções morais que vão defini-los. A liberdade não existe sem autoconhecimento. Quando trocamos uma bandeira de um país por uma de qualquer partido político estamos correndo grande perigo. Quando um povo serve como marionete política, ele está condenado à miséria. O fanatismo corrompe e corrói.
8 – Ou seja, não aprendemos nada com o sofrimento causado por estes regimes ditatoriais, que mataram milhões de pessoas…
Aprendemos pouco, lamentavelmente. Se em algum momento tivemos a chance de “engatinhar” para um progresso político, hoje estamos rastejando por condições básicas de sobrevivência. É infame termos ainda em nosso tempo, em nossa história, líderes que se acham soberanos, a partir de um poder que explora e massacra. Dói muito conviver com a privação e a desigualdade. As condições de guetos e de campos de concentração eram deploráveis, comprovadamente desumanas. Muitos países vivem nas mesmas condições.
9 – Você costuma dizer que a Segunda Guerra ainda não acabou. Quais são os efeitos em nossa sociedade, em especial no Brasil?
Os efeitos estão vivos na prática do poder pela corrupção. Onde há impunidade, existe a corrupção. A fabricação de falsos benfeitores que lutam em causa própria, levando o povo à miséria, estão presentes em todas as esferas da nossa doente política. Lutamos por um país que não existe, que não é parceiro de seu povo. A carência é total. Estamos à deriva. Todas estas condições são extremamente perigosas e devastadoras.
10 – Com base nos seus estudos sobre a Segunda Guerra e os protagonistas que a causaram, o que você acha que leva pessoas a seguirem ideias como as propagadas por Hitler e Mussolini, por exemplo?
É difícil acreditar que uma sociedade tão sofisticada, como a alemã, deu suporte a tantas barbaridades. Não há como isentar o povo de sua responsabilidade. O regime não ocultava suas proezas e não mantinha o povo alheio dos crimes que cometia. Havia uma aprovação consciente da política nazista e principalmente uma idolatria pelo “Führer”. A propaganda foi fundamental para persuadir e convencer a população carente e desorientada. O nazismo foi fabricado dentro de um clima tenso de vingança e terror. O revanchismo pela perda da Primeira Guerra transformou a Alemanha em um campo de batalha. Era um cenário propício para um “salvador”. Quando deu-se a quebra da bolsa em 1929, houve uma maior adesão a um regime que pudesse reverter o caos. Na verdade um milagre e um milagreiro. Oportunidade perfeita para um líder ditador e sua doutrina autoritária.