Djonga faz de turnê ‘Ladrão’ um ato político para a juventude negra
Oito mil pessoas cantaram as músicas de Djonga no Armazém Utopia, no Rio. Rapper é a voz de uma geração que não quer perder o que foi conquistado e luta contra o retrocesso da onda conservadora que varre o país
Muito mais que um show, a apresentação de Djonga no Rio foi um ato político. É difícil fugir da exaltação sobre a memorável madrugada deste domingo (27). A turnê do álbum ‘Ladrão’ marca território para uma juventude negra e pobre que não quer ver conquistas serem interrompidas pela onda conservadora que tomou o país. O show foi no Armazém da Utopia, nome ideal para um local onde o público presente reivindica por um mundo igual, justo e sem o retrocesso atual.
Oito mil pessoas, em sua esmagadora maioria jovens negros, entoavam, em uma espécie de transe coletivo, as músicas do rapper mineiro, que antes de entrar o palco fez duras críticas às mortes de duas pessoas negras pelo Exército, quando militares fuzilaram o carro de uma família em Guadalupe, no dia 7 de abril.
O show foi dividido em três partes, intercalado com o stand up de Yuri Marçal falando de racismo ereligião afro com seu humor ácido característico. O humorista carioca, que acompanha Djonga em sua turnê, aliás, é um tiro certo para dar um respiro na intensa apresentação de cerca de 1h20 com a voltagem sempre nos 220 volts.
O show começou com Mlk 4tr3v1do, sua versão do clássico de Jorge Aragão. Assim como Moleque Atrevido protestava contra a discriminação do samba, a releitura de Djonga pede “respeito a quem pôde chegar” onde ele chegou.
Hat Trick e Bené vieram em seguida e foram cantadas em um coro que fez tremer o espaço na Zona Portuária do Rio. O clima deveria estar na faixa dos 40 graus no mar de pessoas que lotou o local, mas isso não impediu que as famosas rodinhas fossem estimuladas pelo rapper e não se via brigas. O que importava era cantar as letras que pedem igualdade, orientam o jovem a não ir para o crime, denunciam o racismo escancarado que tomou o país e pregam a união entre os negros e pobres.
Além das músicas de trabalho de ‘Ladrão’, sucessos como ‘Junho de 84’, ‘UFA’, ‘Atípico’ e ‘Solto’, do álbum ‘O Menino Que Queria Ser Deus’, e ‘Esquimó’, do disco de estreia ‘Heresia’, fizeram parte do setlist de Djonga.
Abaixo, público canta refrão de ‘Bené’ em São Paulo. Cena se repetiu no Rio
Eu fico em choque com vcs . . . pic.twitter.com/PS6JxIxfrq
— Deus (@djongadorge) 27 de abril de 2019
Outros trechos de sons de projetos paralelos, como “Todo Mundo Odeia Acústico’, em parceria com vários rappers pela Pineapple Brainstorm, e ‘Favela Vive 3’, com o coletivo Além da Loucura (ADL), também estiveram no repertório.
A crítica ao atual governo e a onda conservadora no país estiveram presentes no show, com o público em duas oportunidades puxando o sonoro coro de ‘Hey, Bolsonaro, vtnc’. Marçal chegou a perguntar, antes de fazer piada com o governo: ‘É ele sim ou ele não?’ A resposta foi única e avassaladora.
De touca ninja, Djonga cantou um trecho do clássico funk ‘Rap da Felicidade’ e depois a faixa-título ‘Ladrão’, que estimula o roubo através da música do que é tirado dos negros há séculos. Junto com Doug Now cantou ‘Voz’, a melhor música do novo disco. “Sua visão sobre ainda não mudou/ Não vai ser da forma que tu quer/ Sempre faço questão de ser quem sou/ Mais honrado morrer sendo quem é e tamo aí, né?”, diz o refrão cantado por todos, martelando que apesar das estatísticas que engrossam a fila de negros e pobres mortos, eles seguem de pé e lutando.
Outra boa participação foi do Mc Kaio, funkeiro mineiro que canta o refrão de ‘Tipo’. Suas raízes e família estavam presentes em ‘Benção’, feita para a avó e o pai. “Essa música eu fiz para a pessoa que eu mais amo nesse mundo”, disse, antes começar a cantar ‘Leal’, que fez para a sua mulher. ‘A Música da Mãe’, single lançado ano passado, também engrossou as homenagens.
Com um DJ e um backing no palco, e às vezes o auxílio de um baixo e um violoncelo (em ‘Falcão’), Djonga domina o palco e conduz seus fiéis seguidores a lutar pelo seu espaço no mundo. A mensagem é não recuar, mesmo diante das adversidades.
Djonga sabe a responsa que carrega, mas chama os seus para juntos mudarem a desigualdade e o racismo que condenam de forma voraz a população negra. Grita por liberdade contra a justiça que condena o DJ Rennan da Penha e denuncia uma sociedade que aplaude. Como o próprio diz, a cultura periférica só é útil se tocar no “palco favela do Rock in Rio”.
Uma grande roda foi aberta para cantar ‘Olho de Tigre’, música de outro projeto paralelo. Uma cabeça com o famoso capuz dos seguidores da Ku Klux Klan coberta de vermelho sangue foi lançada aos espectadores, que cantaram a música do início ao fim, principalmente o refrão-hino que pede ‘fogos nos racistas’.
‘Falcão” e ‘Esquimó’ fecharam épica noite no Armazém da Utopia, onde o sonho por uma sociedade menos racista e mais igualitária é luta. É como Djonga diz na faixa que encerra o álbum ‘Ladrão’, “É que eu voo alto, eu sou Falcão/ Vamos mudar o mundo, baby?/ Quero te dar o mundo, baby”.
Avaliação: Excelente