El Efecto evolui ao expandir som e discurso com ‘Memórias do Fogo’
Lembro bem da primeira vez que vi o El Efecto tocando ao vivo. Foi em 2005, no extinto Projeto Sintonia, um festival de bandas independentes com patrocínio de uma marca de refrigerantes que acontecia no campus Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio (UFRJ). Muitas bandas boas tocaram no festival, algumas já foram extintas, e outras seguem carreira desde então. Um amigo me recomendava o som do grupo — misto de rock (em várias vertentes) com ritmos brasileiros e um forte discurso político — há algum tempo e, enfim, ouvi ‘Tilt’, até hoje a minha preferida. Fui ao show conhecendo apenas uma música e, rapidamente, fiquei impactado. Das caixas saía o caldeirão sonoro e uma letra mordaz sobre como a população de rua não é vista. ‘A minha roupa é suja e encardida/remexo o lixo procurando por comida/mas veja só, onde já se viu?/O meu almoço é o que você cuspiu’. ‘Ricardinho’, como era conhecida, foi ampliada e virou ‘Os Seres’ alguns anos depois.
Desde aquela apresentação passei a acompanhar os passos da banda. Passados 14 anos, o El Efecto tocou em festivais e muitos palcos, dentro e fora do Brasil, e se consolidou como grande nome do cenário independente. Neste ano, lançaram dois discos: ‘Ao vivo no Méier’ (é, eu também estava lá) e ‘Memórias do Fogo’. Sapoti Cultural bateu um papo com a banda, por e-mail, sobre carreira, política e futuro.
1 – Vocês mudaram de formação algumas vezes e, agora, se consolidam como sexteto. De que forma a entrada de dois guitarristas, Cristine e Tomás, reflete no som? Como foi essa ponte?
Tomás Rosati – Na passagem da experiência do estúdio para o “ao vivo”, o violão e a viola caipira foram incorporados de vez e o Bruno acabou migrando para esses instrumentos. Então chamamos a Cris e o Tróia pra manter a presença das duas guitarras e enriquecer as possibilidades de som. A ideia foi ampliar a banda pra dar conta dos arranjos. O cavaquinho e a escaleta também entraram na jogada e agora temos mais opções de instrumentação e sonoridades.
2 – Ouvindo ‘Memórias do Fogo’, percebo que a mistura de influências de sons brasileiros com o rock, sempre característica da banda, está mais acentuada (e azeitada), notadamente pro samba. A intenção foi essa?
Bruno Danton – Uma vez, passando perto da Central do Brasil, vimos uma pixação: “Malandro é o cavalo marinho, que se finge de peixe pra não ter que puxar carroça”. Ficamos com essa frase na cabeça e pensamos em fazer uma música com ela, na linha do samba de breque, daí surgiu “O Drama da Humana Manada” que, de fato, acabou se desdobrando num mergulho na linguagem do samba e do pagode. Mas acho que esse movimento se refere mais à demanda específica do universo narrativo dessa música, do que do disco como um todo. Em geral, cada composição puxa pra um lado, na tentativa de propor um diálogo entre a letra e o instrumental. Bom, pra ser mais justo, são duas com essa pegada no disco! “Carlos e Tereza” também trás uma pegada de samba de roda, pagodão baiano e tal…
3 – Quais as principais influências dos integrantes e como elas se integraram em ‘Memórias do Fogo?’
Bruno Danton – Todo mundo coincide no interesse por música sem muitas barreiras de estilo ou gênero e também na pilha por pesquisar e se embrenhar linguagens musicais variadas. O “Memórias do Fogo” é fruto desse interesse. Apesar do Tróia e da Cris terem chegado num momento posterior ao das composições, acho que o disco contempla todo mundo nessa perspectiva de encarar a música.
4 – Outra marca do disco, pelo menos pra mim, é que o discurso político vem carregado de mais ironia, uma presença mais forte mesmo, especialmente em ‘O Monge e o Executivo’. Falem sobre.
Tomás Rosati – Pois é, pra seguir firme no propósito político da banda, tentamos ser cuidadosos pra que o discurso crítico não se banalize, que ele de alguma forma consiga ter algum frescor e seja capaz sensibilizar, de causar inquietação. Às vezes, um olhar indireto sobre a coisa é mais efetivo do que sair abordando a coisa em si, num tom afirmativo.
Como na lenda da Medusa. Quem olha pra ela diretamente, vira pedra. Pra matá-la, Perseu usou um espelho, foi vendo ela pelo reflexo… e atacou! A ironia também tem algo a ver com isso, uma maneira de dizer algo pra dar a entender o oposto, muitas vezes é mais efetivo…Por isso é um recurso que sempre temos à mão, uma arma pra que nosso discurso crítico não se petrifique.
5 – Como foi o processo de gravação do disco e como ele se diferenciou dos demais álbuns da banda?
Gustavo Loureiro – Foi um processo curioso pois, por um lado, ao longo da maior parte do processo, estávamos com a banda incompleta, éramos só quatro. Mas, apesar disso, o disco acabou se tornando uma construção coletiva, de uma forma como nunca tínhamos feito antes.
Foi um trabalho feito à base de parcerias e isso se manifestou na produção, na contribuição de vários instrumentistas, nos arranjos, nos debates a na construção das letras, na parte visual e até na composição propriamente dita. Enfim, foi um processo demorado, cozinhado a fogo lento e que envolveu muita gente. Fica aqui um salve especial à produção musical de Patrick Laplan e Tomás Alem, dois caras que foram fundamentais e que estiveram presentes em todas as etapas de produção desse disco.
6 – Entre um disco de estúdio e outro, foram seis anos e o cenário político do país mudou de cabeça para baixo. Como a banda viu as chamadas Jornadas de Junho e o golpe e de que forma esses acontecimentos influenciaram no resultado final?
Tomás Rosati – Bom, não temos a pretensão de fazer uma análise totalizante dessas acontecimentos. Mas talvez um aspecto possível de ser ressaltado, comum aos dois acontecimentos, seja a emergência da direita indo pras ruas, botando a cara e se articulando…Com isso, fica configurada a polarização, já que essa mobilização de direita é também uma reação conservadora às conquistas e aos avanços das lutas da esquerda.
Então, talvez esse seja o saldo, a queda das máscaras, e escancaramento das disputas. Enfim, a luta está posta! Talvez o disco tenha demorado pela necessidade de ter algum distanciamento para assimilar e reorganizar os sentimentos de indignação.
7 – Em 16 anos de banda, o cenário independente foi se modificando no Rio e no Brasil. Queria que vocês falassem um pouco sobre os impactos positivos e negativos e o que mudou para o El Efecto de lá até aqui.
Bruno Danton – Pra gente, essa trajetória é baseada no acúmulo de experiências, por isso foi sempre um crescente, à conta-gotas, mas foi. Nessa caminhada, vamos, pouco a pouco, expandindo o público interessado, a rede de colaboradores, as condições técnicas, as vivências e tal. Mas tudo isso se dá numa esfera de iniciativas pessoais.
A grande mudança, sem dúvida, foi a expansão da internet e das redes sociais, que permitiram um movimento mais expressivo de compartilhamento e de disseminação das ideias, potencializando o boca a boca e o fortalecimento desses laços, de comunicação, divulgação, etc. Ao longo desses 16 anos, acompanhamos muitos altos e baixos de efervescência da cena alternativa. O maior desafio ainda segue sendo circular por aí e garantir condições legais pra tocar.
8 – Este ano vocês também lançaram um disco ao vivo. Quais os planos para a turnê?
Gustavo Loureiro – Passamos muito tempo recolhidos, dedicados à composição, gravação e produção do disco. Foram 3 anos nos quais quase não tocamos. A ideia agora é retomar o gás e circular bastante com o disco novo, firmando presença por onde já passamos e tentando chegar a novos lugares onde ainda não conseguimos estar. Enfim, expandir os canais. Contamos com a colaboração de todo mundo, pra ajudar a passar o trabalho adiante! HáBraços!
‘Memórias do Fogo’ é lembrança que a chama não pode se apagar
Em sete músicas concisas, o El Efecto expande seu universo sonoro enquanto formata o discurso político em mensagens fortes e arrebatadoras. O início, com ‘Café’, estabelece a influência rítmica de países vizinhos e aponta: ‘a flor do bem-estar se rega com suor da escravidão’, em um dos melhores momentos do vocalista/cavaquinista/percussionista Tomás Rossati. ‘O Drama da Humana Manada’, primeiro single, é o que a banda faz melhor desde sempre: a mistura de ritmos brasileiros, neste caso o samba, com o peso do rock, na crítica definitiva sobre as relações de trabalho e, a reboque, à Reforma da Previdência, citando Gonzaguinha. ‘Carlos e Tereza’, poderia tocar em qualquer rádio de música brasileira. Também focada no samba, a canção cita Teresa de Benguela e Carlos Marighella, dois personagens históricos de épocas diferentes e suas lutas contra as desigualdades de seus tempos.
‘O Monge e o Executivo’ vem com uma fina ironia na melhor letra do disco. Mirando gurus vazios da autoajuda, empreendedores que reproduzem discursos ultrapassados e versando sobre injustiças, a faixa é certeira e expansiva, principalmente no bom rap de Helen Nzinga. A declamação de ‘Chama Negra’, de Rachel Barros faz a ponte entre a África e a América Latina na poesia e som, descrevendo a luta da mulher negra, persistindo como um fogo que não se apaga. ‘Trovoada’ segue a exploração de ritmos africanos, notadamente o jongo, para avisar que ‘quem diz jura que não vê cor, é sinhá, e sinhô…’. ‘Incêndios’ completa a obra cíclica do grupo e, com um toque de melancolia, retorna ao hardcore e propõe reflexões sobre lutas diárias e sentencia: ‘não há solução dentro do seu conforto’. A evolução, marca do El Efecto, se consolida definitivamente em ‘Memórias do Fogo’.
Avaliação: ótimo