‘Histórias da Minha Área’ não é só sobre a quebrada de Djonga, mas de milhões de jovens favelados

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Quarto álbum do rapper mineiro em quatro anos mantém discurso crítico e reforça que Djonga ainda tem muito para nos ensinar

 

No último dia 13 de março, tudo foi igual para os fãs de Djonga. Enquanto para uns foi sexta-feira 13, que traz mau agouro, para os seguidores do rapper mineiro foi dia de mais um lançamento, o quarto álbum de sua carreira em quatro anos, sempre na mesma data, que forma o 133 do Código Penal, que fala do crime de abandono. “Histórias da Minha Área” não é só sobre a quebrada de Djonga, mas de milhões de jovens favelados do Brasil. Mais uma vez, ele mantém a qualidade e discurso crítico e mostra que ainda tem muito para nos ensinar com seus versos.

Produzido pelo seu parceiro de batida Coyote Beatz (nove das 10 faixas), o disco é ainda mais intimista ao desenhar o longo caminho de Djonga desde a infância até vencer no rap, mas, como o próprio título aponta, traz histórias de amigos de sua área.

O álbum chamou atenção antes do lançamento, quando o rapper divulgou a capa do disco, que mostra ele e mais quatro jovens negros, amigos de infância, em dualidade: sorrindo e vivos, enquanto os próprios também estão caídos no chão, mortos a tiros.

Na mesma imagem a morte, resultado da discriminação de jovens pretos ou por seguir na vida do crime, e a vida, para quem “contrariou as estatísticas”. A arte é de Alvinho Benevente, com fotografia de Daniel Assis

Capa do novo álbum de Djonga, ‘Histórias da Minha Área’

Na faixa-abertura, “O Cara de Óculos” traz a participação da cantora, compositora e atriz mineira Bia Nogueira, que dirigiu Djonga como Madame Satã no teatro, numa intro de rasgar no peito. “Nem é cedo demais para saber que a vida é desgraçada aqui/ Meu Filho amor, tem dessas coisas…/ Rudes”, canta ela. 

“O Cara de Óculos” traz a crueza de viver nas favelas, com seus dilemas, esculachos e decisões (“o cara certo na vida errada”). Mas evoca o caminho seguido por Djonga e que o respeito pode ser conquistado fora da vida do crime (“Você só vai ser o maior do Brasil depois que for o maior da sua rua”). Uma das melhores do álbum, tem refrão com grande potencial para seu cantado em uníssono em seus shows. 

“Não Sei Rezar” é uma homenagem aos amigos da quebrada que se foram por entrarem para o mundo do crime. Melancólica, ela também traz a acidez de seu discurso ao criticar o abandono de quem vive nas periferias (“Enquanto não houver justiça pra nóis/ Juro que para vocês não vai ter paz”).

Seu nome no céu vou honrar/ Dessa vez com algo efetivo/ Parei de pensar em matar/ Vingança vai ser ficar vivo”, canta Djonga em “Não Sei Rezar”. 

“Oto Patamá” é uma referência ao craque do Flamengo Bruno Henrique, mineiro de BH como Djonga. ”Nós só é bom no campo igual Bruno Henrique / Porque lembra dos tempos de várzea”, canta em um trecho. 

“Se cada vida é um universo / Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro / Seja protagonista da sua história / Pega a folha e muda o roteiro”, prega em outro trecho da faixa, outro ponto alto do disco. “Lanço todo dia 13, pra provar pra tu/ Que um raio cai de novo no mesmo lugar”, esclarece.

“Hoje Não”, lançada, junto com um clipe, é emblemática: o vídeo traz uma reconstituição com um final diferente do trágico da menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta com um tiro disparado por um policial quando estava dentro de uma kombi no Complexo do Alemão voltando para casa com sua mãe, ano passado. 

“É que enquanto o doutor capota os de raça no soco/ Ela tá falando que ama ver o preto no topo/ Imagina seu moço, um neto com esse biotipo/ O mais fácil é eliminar todos esses garoto”, canta Djonga.

Em “Hoje Não”, Djonga é focalizado no clipe através de um cano de uma pistola, ao lado de seu parceiro Coyote Beatz, após ser enquadrado em mais uma “abordagem padrão”. No fim, os responsáveis pelas mortes de inocentes nas favelas pagam por seus crimes. 

Mesmo mantendo a raiz com as batidas secas características do seu rap, Djonga volta a passear por outros ritmos, como em “Mania”, que dialoga com o funk na parceria com MC Don Juan, com muita sacanagem, que nunca falta em seus álbuns. 

“Ela tem 27, eu que sou menorzin/ Vou falar o que ela fez que meu deixou assim/ Fez o meu p.. de trampolim”, canta o funkeiro, ao som da batida do tambor ritmado. 

A pegada “cafajeste”, também presente em seus álbuns, continua na faixa “Todo Errado”. “O combinado era voltar às nove/ Mas cheguei às três, batom, putão, tipo solteiro”, canta. Dessa vez, teve troco e “ela foi pra pista”. “Nem foi discreta, muito esperta/ E fez isso por que? Porque eu sou todo errado…”, lamenta.

A busca de se libertar do machismo e o lado “romântico” de “Todo Errado” é reforçada em “Procuro Alguém”, que também fala da filha Iolanda, a bebezinha caçula da família que chora no fim da faixa e destaca esse esforço do rapper em melhorar.

“Que as meninas que me importam estão dentro do meu lar/ Tão me ensina a passar a visão preu não criar um menor cego/ Hipocrisia à parte, meu lado realista/ Vou poder a primeira vez ser menos machista/ Na prática a vontade é te prender em tudo/ Mas pássaro é pro vento, igual você pro mundo”, traz o verso cantado por Djonga. 

“Gelo” traz o seu padrinho e conterrâneo FBC e o carioca NGC Borges.“Nós aprendeu a dividir quando não tinha nada/não vai sofrer pra dividir que agora que tem tudo”. Deus Dará tem a rapper Cristal detonando o discurso de meritocracia junto com Djonga e defendendo que na favela a união dos moradores é que vence.

Fechando a tampa, uma produção do paulista Renan Samam, que produziu grandes sucessos de Emicida e outro rappers da cena de São Paulo. “Amr Sinto Falta de Nssa Ksa” mistura um pouco jazz nos samples e encaixa perfeitamente com o romantismo da faixa. 

Marcola, um dos amigos da quebrada em destaque na capa do disco e presente no fim da última faixa, assim como em “Oto Patamar”, mostra que o respeito e admiração foram conquistados por Djonga em sua área. “Canta demais, sô!”. 

Muito mais que fazer um recorte dos problemas e dilemas de quem vive nas periferias do país, “Histórias da Minha Área” traz um retrato da elite que ignora essa grande parcela da sociedade e prega da cobertura de seu condomínio de luxo a meritocracia.

Em tempos de coronavírus, que escancara o abandono e descaso com quem vive nas favelas, o disco é um soco na cara dessa hipocrisia. Suas letras mostram a situação de milhões de jovens negros periféricos, que sofrem na pele com a exclusão, o preconceito e a violência policial. 

Avaliação: Excelente

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