Negro Leo examina relações humanas nos meios digitais em ‘Desejo de lacrar’

 em música

Álbum do músico maranhense, radicado em São Paulo, é uma das grandes obras do ano

Lembro vivamente da primeira vez que vi Negro Leo tocando ao vivo. Sozinho, no palco do Circo Voador, mítica casa de shows na Lapa, no Rio de Janeiro, o cantor e compositor maranhense empunhava um violão e, sentado sob luzes baixas, hipnotizava a plateia que aguardava pelo show do álbum Refavela, clássico de Gilberto Gil, comemorando 40 anos naquela noite de setembro de 2017. Hoje radicado em São Paulo, Leo é cria de uma cena experimental criativa que se maturou na Audio Rebel, essencial espaço alternativo em Botafogo, e um dos artistas mais inovadores de sua geração, que surpreende a cada disco lançado. Não é diferente com Desejo de lacrar, lançado na semana passada em todas as plataformas digitais.

Desejo de lacrar, primeira obra de Leo após o ótimo Action Lekking (2017), é um exame cru e direto sobre as relações humanas criadas nos meios digitais, no contexto do ‘lacre’. Quem vive ou pesquisa a web pelo menos desde 2015/2016 conhece o termo, utilizado primeiramente por grupos LGBTQI+ para exaltar uma argumentação “perfeita”, sem brechas para contestações, geralmente empregadas contra homofóbicos ou preconceituosos de toda sorte. À época, a cantora Liniker recitava em seus shows a ‘Benção do lacre‘ para empoderar as pessoas. A partir de 2018, no entanto, no contexto da ascensão da extrema-direita no país, culminando na eleição presidencial, o termo foi capturado para fins de glorificação de atos machistas, homofóbicos, misóginos e de notícias falsas.

Negro Leo, foto de Rafael Meliga

Um vídeo do ex-ministro da Educação dando a notícia do desbloqueio de verbas das universidades federais como se fosse uma conquista do governo, não um direito, ficou famoso pelo uso dos ‘oclinhos’ thug life. É nesse contexto que Desejo de lacrar se comunica com o panorama político do Brasil contemporâneo. A lacração, para Negro Leo, está em disputa. “Lacrar é agir de forma insolente e revoltada. Vencer, se não de fato, virtualmente. Lacrar, na verdade, é o que nos resta”, explica no release do projeto.  Nesse sentido, o disco é pedra fundamental desse combate que está posto para além da internet.

Na abertura, com a faixa-título, Leo canta sufocadamente, entre soluços: ‘Sou quimera, inexoráveis primaveras, de povos”. Entre os synths e divisões quebradas de Dança Erradassa, um improvável hit, o músico divide momentos íntimos: ‘Todas essas coisas que não sou, ficam debaixo do palco onde sou cantor, ficam tão longe de casa’, versa. Eu Lacrei, Absolutíssimo Lacrador e a genial e viciante Tudo Foi Feito para Gente Lacrar complementam a atmosfera que paira sobre a polarização. No meio dessas canções, paisagens sonoras psicodélicas, flertes com o hardcore e uma bossa nova torta cheia de eco. Há as vozes que pintam no buraco das bombas ecoam forte, afinal.

Esplanada lembra os momentos mais etéreos, por assim dizer, de Action Lekking e Água Batizada (2015), o tipo de “loucura” que Leo exerce com o ritmo para ir além de quaisquer convenções musicais. Makes e Fakes, parceria com o o poeta Tazio Zambi descreve uma “selva de pixels” que parece antever um estado pré-ação que se comunica com a figura de Michael na capa, à espera. Desvio pro Vermelho é um interlúdio rápido e The Big One é uma aula de desconstrução e construção harmônica e melódica, talvez o momento mais marcante do disco, com um crescendo arrebatador. Fechando os trabalhos, Outra Cidade imagina um futuro possível entre assobios.

Com produção musical de Sérgio Machado e direção do próprio artista, o álbum foi mixado e masterizado por Nick Graham Smithno Estúdio Pendulum. O time que compõe as 10 faixas é, por si, um senhor acontecimento musical. Além de assumir a produção, Machado toca bateria e é acompanhado por Fabio Sa no baixo,  Chicãono órgão e sintetizadores e Leo na voz e violão (e assobios). Desejo de lacrar é um dos grandes discos do ano e consolida Negro Leo como um dos grandes da nossa música, para além de qualquer simples rotulação de experimentalismo, e vai reverberar por muito tempo, seja qual for o cenário que nos aguarda na pós-pandemia ou numa disputa dentro e fora da web.

Ouça “Desejo de lacrar”:https://smarturl.it/DesejoDeLacrar

Avaliação: Excelente

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