Os melhores discos nacionais de 2020
Confira os álbuns que mais escutamos esse ano
A pandemia da covid-19 foi devastadora nos campos político, social e econômico neste ano. No Brasil, a arte tornou-se inimiga do governo federal, onde um ex-ministro divulgou um aterrorizante vídeo que emulava uma propaganda nazista e terminava com um discurso sombrio (e, logicamente, vazio). Perdemos muitas figuras importantíssimas para o desenvolvimento da música brasileira. Se foram Aldir Blanc, Ubirany Nascimento, Ciro Pessoa, Davi Correa, Evaldo Gouveia….e seguimos em um período onde os shows foram trocados pelas lives, que nos ajudaram a tocar a vida de alguma maneira.
Do sofá, se apresentaram Zeca Pagodinho, Gal Costa, Elza Soares, Marília Mendonça, Raça Negra, Teresa Cristina, Caetano Veloso, Paulinho da Viola…verdadeiros lufadas na alma em tempos conturbados, onde mais de 180 mil brasileiros morreram até esta semana de Natal. Felizmente, boas músicas continuaram a ser feitas em todos os cantos do país e em vários gêneros. Tivemos o segundo disco do grandeL7nnon, o EP de Àiyé, a volta da Academia da Berlinda e diversas outas manifestações. Elaborar uma lista é também cometer injustiças, mas vamos aos selecionados.
Escolhemos, sem ordem de preferência, os dez melhores discos nacionais de 2020. Ouça alto:
BK’ – O Líder em Movimento
A carreira de Abebe Bikila segue uma ascendente. Desde Castelos & Ruínas (2016) há algo especial na poesia de suas rimas, fortes e certeiras, que atingiram um novo patamar em O Líder em Movimento. Neste álbum, BK’ encarna a persona do líder que pensa sobre o estado atual de coisas e busca proteger a si e aos seus. No contexto, músicas poderosas sobre autoafirmação, amor, coletividade e, principalmente, memória. BK’ sabe que é preciso sempre estar atento e se movimentando para emergir nas frestas e fortificar a luta antirracismo.
Djonga – Histórias da Minha Área
Março virou ‘Mês de Djonga’, sem dúvida o nome mais impactante da cena rap contemporânea.Histórias da Minha Área é um passo reflexivo em relação a seus trabalhos anteriores, sem deixar de lado sua essência. Estão lá os refrões marcantes (O Cara de Óculos), as amizades (Oto Patamá), homenagem à mulher e à filha (Procuro Alguém) e outras gemas como a malandra Todo Errado ou a pungente e melancólica ‘Amr Sinto Falta da Nssa Ksa‘, onde o rapper faz um balanço de sua meteórica carreira quase como uma nota de despedida, “desmentida” pelo áudio final.
Ilessi – Dama de Espadas
Ilessi já tem uma carreira de mais de 20 anos na música e em Dama de Espadas, primeiro disco com composições suas, mostra uma faceta interessantíssima de sua arte. Ancorada por músicos da nova cena carioca, Ilessi faz essencialmente um disco de música brasileira, mas com espaço para gêneros que vão do blues à milonga, usando a instrumentação do rock. O resultado nos deixa esperando por uma apresentação ao vivo em 2021 (já existe no Youtube) e a constatação que fica é que não há ninguém fazendo o que Ilessi está fazendo. Muito poderoso.
Kiko Dinucci – Rastilho
Munido de seu violão, Kiko Dinucci entrega mais um disco demolidor com Rastilho. Da capa ao conteúdo, tudo soa azeitado. A matadora versão para Vida Mansa de José Batista e Norival Reis é um dos grandes destaques, bem como as participações da companheira Juçara Marçal em Gaba, Ava Rocha emDadá e Rodrigo Ogi em Veneno. O instrumento base de Kiko é transformado em percussão em todas as faixas, onde harmonia, melodia e ritmo se unem e confundem e finalmente arrebatam. Como vaticina a canção título: vamos explodir.
Luedji Luna – Bom Mesmo É Estar Debaixo d’Água
Talvez um sinônimo para Bom Mesmo É Estar Debaixo d’Água, segundo registro fonográfico de Luedji Luna, seja…beleza. A instrumentação passa por violões, violinos e a inspiração africana permeia e se desenvolve exponencialmente em todo o álbum e seu conceito. Se na estreia Luedji explorava o som da África, aqui tudo encontra uma familiaridade. A decisão da cantora, de timbre único, de ser a coprodutora é marca dessa virada de enxergar seu lugar no mundo. Tradição e contemporaneidade se unem de forma sublime.
Marcelo D2 – Assim Tocam os Meus Tambores
Quarentenado como muitos brasileiros privilegiados, Marcelo D2 lançou seu álbum mais consistente da carreira. Assim Tocam Meus Tambores começa agradecendo (‘o que seria dessa porra trancado sem vocês?’, se questiona D2 em Bem-vindo Meus Cria) e termina com um balanço inspirado de sua carreira (‘Garage, bohemia, Lapa/Se a luta é contra o sistema, irmão, eu dei minha cara a tapa’ em Pelo Que Eu Acredito). As participações, que vão da mulher Luiza Machado a Jorge du Peixe só abrilhantam o álbum. Um divisor de águas.
Mateus Aleluia – Olorum
Mateus Aleluia saúda a divindade suprema da religião iorubá em um percurso que valoriza a ancestralidade e sua extensa riqueza musical. Olorum é o retrato de toda a obra do tincoã, que brilha com momentos únicos, que somente um artista desta grandeza poderia trazer. ‘Calai a voz do enganador/Fazei chover só chuva de amor’, emSamba-Oração é um afiado resumo de onde nos encontramos. São mais de seis décadas de bons serviços prestados à cultura brasileira em arranjos que se alternam entre densidade e beleza, com criatividade absoluta.
Negro Leo – Desejo de Lacrar
Já falamos sobre o quanto Desejo de Lacrar, de Negro Leo, é um disco essencial. Vamos reforçar novamente. O maranhense hoje em São Paulo sempre surpreende (não percam o recém-lançado CAC CAC CAC) e aqui não poderia ser diferente. A partir do contexto do “lacre”, que foi atualmente capturado por grupos de extrema-direita, Leo examina as relações humano-políticas sobre camadas digitais. Quem rotula o trabalho do compositor como experimental perdeu o bonde da história. Tudo está posto para ser pop de altíssima qualidade.
Ramonzin – Arteiro
Cria de Madureira, Ramonzin passeia pelo rap, funk e até R&B na coleção de hits que é Arteiro. ‘Nada impede a gente porque nada prende somos corpos livres/E o que nos une é o que a gente sente no que a gente vive’, canta junto com Malía em Carnaval Eterno. As levadas, mais urgentes que os trabalhos anteriores, e os beats se unem em arranjos sofisticados, permeados por outras participações especialíssimas (Luedji Luna, MV Bill) que dão peso e coesão ao disco. Mas sozinho Ramonzin também brilha forte, como em Da Nossa Maneira eFé na Luta.
Zé Manoel – Do Meu Coração Nu
Projetado para o país em 2015 com Canção e Silêncio, o pernambucano Zé Manoel volta com Do Meu Coração Nu, seguindo outra toada. Desta vez, Zé passa a pensar o Brasil a partir de sua construção como homem negro, unindo a doçura das faixas e pensando a coletividade. O pianista, exímio e cirúrgico, une narrativas que passam pela diáspora africana e decai no estado das coisas. Há belíssimos registros como No Rio das Lembranças até Escuta Letieres Leitte, onde o maestro dá uma pequena aula sobre o que é, afinal a música brasileira. Clássico.