Por que ‘Joy as an Act of Resistance’, do Idles, é o disco mais importante do ano

 em artes, música

Em tempos de extremos, a arte sempre se coloca primeiramente como resistência. Parte da fruição de toda obra é descobrir camadas, texturas, discursos e significados que dialogam de diversas maneiras com o mundo em que vivemos. Os ingleses do Idles, cuja estreia ‘Brutalism’ (2017) figurou nas listas de melhores do ano passado com todos os méritos, voltam com ‘Joy as Act of Resistance’, um disco-manifesto que propõe reflexões sobre política, machismo, amor, luto (e lutas) e união.

O quinteto de pós-hardcore/pós-punk aprimora a sonoridade, calcada principalmente na dualidade entre agressividade/calmaria instrumental e do discurso feroz/irônico do vocalista Joe Talbot e entrega o álbum mais importante de 2018, um exame divertido, doído e esperançoso sobre a sociedade (um paralelo nacional é o disco novo do El Efecto) como seu título diz. Antes da resenha, se você não os conhece, duas amostras de músicas populares. ‘Mother’ discursa sobre extensas jornadas de trabalho, prática comum em um sem número de países, e aponta a mira para ostories (conservadores na Inglaterra) com seu trocadilho impagável no refrão e violência masculina. ‘Well Done’ narra uma típica conversa familiar com ironias, sarcamos e reflexões sobre o papel de classe.

‘Joy as an Act of Resistance’ abre com ‘Colossus’, uma marcha crescente que fala sobre vícios e das sombras de figuras tóxicas, enquanto as guitarras emolduram viradas de bateria soltas e um baixo marcante aparece para se juntar ao vocal rasgado de Talbot. Um bom resumo sobre o som do Idles e do que é o disco. ‘Never Fight a Man With a Perm’ aposta na construção sônica característica da banda enquanto versa sobre os perigos de brigar com um homem com um permanente com fúria e humor: “até seu corte de cabelo é violento”.

‘I’m a Scum’ remete a bandas punk como Rancid e Dead Kennedys, com o baixo pontuando a melodia na canção mais ‘tradicional’ do álbum e dá o recado: “este floco de neve é uma avalanche”. ‘Danny Nedelko’, certamente a faixa mais acessível e cantarolável fala sobre imigrantes, personificada em um dos melhores amigos do vocalista. “Meu melhor amigo é um imigrante/feito de ossos, carne, feito de amor/de mim e você”.  ‘Love Song’ é uma divertida mistura de gêneros dentro do rock, uma improvável e muito verdadeira etapa de se apaixonar e amar alguém.

‘June’ desacelera o ritmo enquanto Talbot reflete sobre a tragédia pessoal de perder uma filha recém-nascida num crescendo de cortar o coração: “sapatos de bebê à venda/nunca vestidos” (frase atribuída ao escritor Ernest Hemingway). ‘Samaritans’, a mais forte entre as 13 canções, expõe frases típicas do machismo, a luta contra os arquétipos masculinos e mostra o que a banda tem de melhor com uma dinâmica muito bem construída, que reforça o poder da canção. “É por isso que você nunca viu seu pai chorar”, sentencia Talbot, certeiro, sob guitarras estridentes.

‘Television’ soa como uma espécie de atualização de ‘TV Party’ do Black Flag e pede que os ouvintes tenham amor próprio e dêem pouca importância ao que é dito na TV (ou nas redes sociais). ‘Great’, um dos singles, mira em direção ao chamado Brexit, que deve isolar econômica e socialmente a Inglaterra da Europa, e tira (algum) sarro de quem foi favorável à medida, demonstrando também preocupação: “estamos todos juntos nessa”.

‘Gram Rock’ traz de volta a crueza bem trabalhada do grupo, baterias com eco, baixo distorcido e guitarras dissonantes são propositalmente embaladas para o formato, enquanto a letra dadaísta discorre sobre individualismo. ‘Cry to Me’, clássico soul de Solomon Burke e também regravada pelos Rolling Stones, ganha uma versão industrial, que lembra Nine Inch Nails. O fecho, com ‘Rottweiler’, joga o escopo para os famosos tabloides ingleses, Talbot os chama de abutres e pede união e força escorado pelo carro desgovernado da banda.

As músicas talvez não sejam para todo mundo pela aspereza típica dos gêneros em que o Idles transita, mas certamente carregam esmero de produção, letras, arranjos — alguns cuidadosamente sujos ou limpos. A mensagem, que é mais importante, se aplica praticamente a qualquer país do mundo, cada qual com suas particularidades e problemas. Talvez daqui a algum tempo, espera-se, poderemos ouvir e encarar ‘Joy as an Act of Resistance’ como um retrato de um tempo que ficou para trás. Por enquanto, restam força, amizade e esperança.

Avaliação: Excelente

Comece a digitar e pressione Enter para pesquisar