Rodas culturais ocupam as ruas e viram espaço de resistência do hip-hop
Rio – Espaços de resistência da cultura hip-hop, as rodas culturais vêm se destacando cada vez mais na cena não só carioca, mas em todo o estado do Rio. Seja na calçada, em uma praça, o local que for, os participantes mostram suas habilidades no freestyle a partir de sua vivência. Com isso, a arte do improviso resiste e o jovem periférico ganha voz.
Filhas de eventos que fizeram história na cena do hip-hop carioca, como a Batalha do Real e Liga dos MCs, algumas rodas – que hoje abraçam outros ritmos – existem há quase 10 anos, quando surgiu o Circuito Carioca de Ritmo e Poesia (CCRP). Driblando as dificuldades de realizar um evento na rua, tanto no aspecto financeiro quanto no burocrático, os organizadores resistem e ocupam os espaços urbanos, dando voz e revelando várias gerações que usam as rodas como trampolim para o sucesso.
Em Manguinhos, improvisadores se reúnem na Roda Cultural PacStão, uma alusão crítica ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que na visão deles pouco trouxe de melhoria para as comunidades da região. Assim como no jogo de palavras usado nas batalhas de rimas, a organização é na base do improviso, mas acontece religiosamente todas as segundas-feiras.
“Nós não temos apoio governamental, de ONGs, ou algo de tipo. A roda é feita do nosso próprio bolso, cada um põe o que tem e alugamos o som, conseguimos até por um preço barato, pois quem aluga para nós é o próprio morador da favela. Ele vê todo o trabalho que fazemos e faz por um preço bacana”, diz Alexandre Campos, 22 anos, o Xandy MC, cantor de rap que organiza e é um dos mestres de cerimônia da roda.
Segundo ele, a roda nasceu a partir de outra já existente que levava Manguinhos no nome e surgiu com a iniciativa do CCRP, em 2010. “A roda já existe há uns 6 anos, chegou a ficar inativa durante quase um ano. Há dois anos tivemos a construção do skateparkem frente a biblioteca [Parque de Manguinhos] e um amigo nosso que trabalhou nas obras teve a ideia de voltar com as atividades da roda, então criamos a Roda Cultural Do Pac’Stão, um nome que já era bem conhecido entre os jovens dali. Ao invés de ser Programa de Aceleração do Crescimento do governo, botamos “Por Amor a Cultura”, conta.
Assim como o país muçulmano, Manguinhos é uma área conflagrada e cercada de outras favelas onde há confrontos violentos entre polícia e criminosos. A roda é vista como uma alternativa a mais para os jovens da comunidade, carentes de atividades culturais e sociais. A batalha acontece em frente à Biblioteca Parque, que poderia ser uma das opções, mas está fechada.
“A ideia da Roda é ocupar o espaço público, usando o hip-hop como ferramenta de transformação social. Somos moradores de favela e compreendemos a precariedade do nosso espaço, então o objetivo é sempre fazer desse lugar um ambiente melhor para as crianças que ali vivem. E dar voz aos moradores, aos jovens que tenham algo a dizer”, esclarece, afirmando que o coletivo formado por ele, o DJ Chris Beats ZN e o MC 2D faz outras ações na comunidade, como batalhas de passinho, break, cineclube e aulas de parkour. “Todo tipo de manifestação artística, dando visibilidade a esse jovem, é uma oportunidade que não seja a vida do crime”, diz.
Mesmo “perdendo alguns soldados”, ele diz que o movimento colhe frutos. “Falo por mim mesmo, sou organizador da roda, mas agora estou em Portugal, ontem (22 de fevereiro) fiz um show em Lisboa, já gravei músicas com artistas daqui, conhecendo um pouco do rap lusófono, tem o nosso DJ, Chris Beats, que juntos montamos um estúdio de música, estamos gravamos bastante gente. Tem o Severo e o Isaac, que são do passinho, Severo dançou recentemente no clipe da Elza Soares, o Iguinho também que já viajou o mundo dando workshop de passinho, tem o Skilo que já viajou pra Europa pra dançar break, fora a garotada que batalha e roda o Rio de Janeiro inteiro”, cita Xandy, que se divide entre a profissão MC, com a qual se sustenta, e o curso de pedagogia.
Roda ocupa praça e becos esquecidos
Em uma praça cravada na Glória surgiu a Roda KGL (KTT [Catete], Glória e Lapa), buscando suprir um espaço para os rimadores. Na Lapa foi onde nasceu a Batalha do Real e Liga dos MCs.
Após um incêndio que atingiu o Centro Integrado de Circo (CIC), na Fundição Progresso, até então reduto que abrigava a batalha de MCs, surgiu a ideia de criar rodas pela cidade, dando início ao Circuito Carioca de Rima e Poesia (CCRP).
“Depois da batalha no CIC, a galera mais viciada se reunia e fazia uma roda de rima ali atrás do Circo Voador. E por aí foi expandindo. Este ano nossa roda completa três anos de resistência”, diz o produtor de eventos e professor de Educação Física Leonardo Lenine, que organiza a Roda KGL junto com o DJ Gustavo Goranmo, do Baile do Ademar.
De acordo com Leo Barata, como é conhecido no meio do hip-hop, as rodas preenchem um vazio deixado pelo poder público. A Praça da Glória, onde tudo começou, era abandonada, mal iluminada e em uma região com muitos roubos.
“As rodas tem por característica ocupar áreas públicas inativas e dentro do possível revitaliza-las. A nossa, por exemplo, ocupou a Praça da Glória e o Beco dos Carmelitas – este último um ponto historicamente cultural na Lapa, onde morou o poeta Manuel Bandeira e o lendário personagem “Lapiano”, Madame Satã”, destaca. Entretanto, a roda já foi realizada em outros pontos dos bairros da Glória e Lapa.
Segundo Leonardo Lenine, a democracia da rua permite o acesso de qualquer pessoa nas rodas culturais e também tem a força de conquistar quem poderia estar perdido na vida do crime.
“É na rua, chega quem quiser, e fica quem pode, isso facilita e democratiza o acesso de jovens marginalizados à cultura urbana. Muitas vezes o moleque que tava saindo pra fazer um “ganho” se depara com a roda, para, ouve, sente as idéias e toma outro caminho na vida”, acredita o organizador.
Como as outras dezenas de rodas culturais espalhadas pelo estado do Rio de Janeiro, a KGL também “dribla” as autoridades para conseguir levar a batalha de rimas para os entusiastas do hip-hop e cumprir sua função de ocupar o espaço público. Em 2015, a festa foi interrompida pela Polícia Militar e o caso foi parar na delegacia, mesmo com os organizadores do evento possuindo autorização da prefeitura para a sua realização. Mas o que poderia terminar mal acabou com uma imensa roda de improvisação na frente da 9ª DP, no Catete, tendo como tema a repressão sofrida. O caso expõe um problema enfrentado pelos organizadores: a necessidade do “nada opor” da PM, que dificulta ainda mais o trabalho cultural nas ruas.
A Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) derrubou na última terça-feira o veto do artigo que libera as rodas sem a necessidade do documento, existente na lei que reconhece o hip-hop como patrimônio cultural imaterial do estado. [Leia mais no final do texto]
Exemplos bem-sucedidos servem de espelho
Nomes como Emicida e Projota (SP), Marechal e Funkero (RJ), são apenas alguns dos exemplos de sucesso que começaram em batalhas de rimas. Hoje no Rio surgem talentos como Xamã, Estudante, Magneto, Muniz, Vydau, MCs JP, Bot, o próprio Xandy MC de Manguinhos, entre outros.
Hugo Mariano, de 17 anos, conhecido como Thorment MC nos duelos de freestyle, sonha trilhar o mesmo caminho dos MCs já consagrados. Morador da comunidade João XXIII, em Santa Cruz, Zona Oeste, começou a fazer rimas com 9 anos, mas há menos de um ano começou a “batalhar” nas rodas culturais.
“Agora que eu terminei o Ensino Médio, estou em rodas culturais todos os dias da semana, costumo ir muito na Marginow, Terreirão, Brutang, essas são as que eu sempre estou”, contou, reforçando que já foi campeão em algumas delas.
No início do ano ele participou de uma seletiva na Roda KGL para uma batalha que aconteceu no evento Tattoo Week, no Centro de Convenções Sulamérica, mas não foi selecionado. Entretanto, duelou com Vydau, apontado como um dos melhores rimadores da atualidade e de quem é fã. E acabou vencendo. “Foi uma das melhores batalhas que já fiz até hoje”, recorda.
Enquanto não vinga no rap, ele vai seguindo a vida e tentando outras possibilidades. “Pretendo viver de rap, mas em paralelo tenho uma faculdade trancada, fiz o Enem e passei pra Literaturas de Língua Portuguesa na UFRJ”, explica. Ele defende que as rodas são espaços que abraçam pessoas de diversas classes sociais. “Acho que as rodas culturais dão espaço para todos, inclusive os marginalizados, abraçando todo tipo de pessoa independente da situação social”, finaliza.
Mapeamento traz todas as rodas culturais do estado do Rio
Para quem é amante do freestyle, o projeto Arte de Rua e Resistência, da professora Rôssi Alves — autora do livro Rio de Rimas (2013) — com alunos de produção cultural da Universidade Federal Fluminense (UFF), fez um mapeamento de todas as rodas culturais existentes no estado do Rio. A pesquisa nasceu em 2013, mas o mapa propriamente dito com os eventos começou tem cerca de dois anos.
Marília Gama, uma das pesquisadoras do projeto, diz que as rodas culturais não são hoje apenas um espaço do hip-hop, mas também de diversas manifestações artísticas, tendo como uma das funções ocupar o espaço público. “Conhecemos várias rodas e uma é diferente da outra, é um espaço plural. É onde a juventude desenvolve seus talentos, eles criam e experimentam esse espaço, e uma nova forma de viver a cidade. Hoje elas não têm só rap: tem circo, biblioteca, várias outras atividades, experimentações”, diz.
Nas rodas culturais, tanto os espaços ocupados quanto os participantes dos eventos ganham. “É um espaço de reconhecimento do jovem, não pelas instâncias hegemônicas, mas um reconhecimento consigo mesmo, onde ele se descobre como autor, criam um processo criativo. Eles dão ressignificado aos espaços que estão completamente abandonados pelo poder público. O jovem ali vive a cidade e a experimenta, é muito mais do que buscar reconhecimento. Ele cria novas narrativas e desenvolve consciência política”, defende a pesquisadora.
No site da pesquisa, há informações sobre rodas que estão ativas e inativas, inclusive das mais antigas do Rio, como as do Méier e de Botafogo, na capital. Os dados se baseiam nos próprios canais de comunicação das rodas e colaboradores, que podem sugerir atualizações ou correções. Segundo Marília Gama, o mapeamento conta com aproximadamente 150 rodas ativas e pouco mais de 30 inativas. Mas o número muda constantemente.
Os pesquisadores do projeto perceberam que algumas rodas param de acontecer, principalmente, por causa da repressão por parte das autoridades e a falta de apoio. “Apesar de ser uma iniciativa cultural que movimenta o comércio e ocupa os espaços que muitas vezes estão abandonados, o poder público não vê na roda toda essa potencialidade. A história se repete como foi com o samba, a capoeira. Tudo que é de preto e pobre sofre uma represália imensa”, critica.
Marília também aponta as rodas como locais de formação de público e movimentação do mercado do rap, já que muitos ganham visibilidade nelas. Ela reforça a capacidade de movimentar a economia local. “Roda potente é aquela que se articula com o entorno, o comércio, a vizinhança”, diz.
As estratégias adotadas pelos organizadores para realizar as rodas, driblar a repressão e a falta de apoio também foram notadas na pesquisa. Gama cita o caso da roda KGL, que acabou na na porta da delegacia, e outro ocorrido em uma roda de Búzios, na Região dos Lagos.
“Um policial chegou para acabar com a roda, mas o mestre de cerimônia surpreendeu e pediu para todos presentes que sentassem, ‘que o policial ia dar um recado para todo mundo’. O PM ficou completamente sem reação e disse: ‘Vocês precisam organizar essa bagunça de vocês se quiserem continuar.’ No fim a roda continuou”, conta.
Segundo a pesquisadora, os organizadores hoje têm mais consciência de que a realização das rodas não se restringe somente a fazer a infraestrutura do evento. “Os produtores estão se dando conta que é preciso se inteirar das leis, dos decretos, participar de reuniões, ir na Alerj cobrar dos políticos, no caso do Rio. Estamos vendo essa movimentação, já que há várias formas repressoras contra as rodas para serem combatidas”, contou.
Rodas não vão precisar mais do “nada opor” da PM
A Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) derrubou por unanimidade, em votação ocorrida na última terça-feira, todos os vetos existentes na lei 7.837/2018, que reconhece o hip-hop como patrimônio cultural imaterial do estado. O principal deles é considerado uma enorme vitória, pois vai permitir que as rodas culturais aconteçam sem a necessidade do “nada opor” da Polícia Militar, desde que os eventos não tenham palcos, camarotes ou arquibancadas.
A lei, aprovada em janeiro deste ano pelo governador Luiz Fernando Pezão – que vetou três artigos, entre eles o que liberava as rodas da autorização da PM, também garante a realização das manifestações ligadas ao hip-hop sem discriminações e abre ainda a possibilidade da criação de editais voltados para a arte.
“Na prática, a burocracia e a ideia de que a policia tem que autorizar essas atividades vinha impedindo que muitas dessas rodas acontecessem. Cultura não é crime! As ruas devem ser ocupadas por mais gente, por mais jovens”, defendeu o deputado Marcelo Freixo (Psol), autor do projeto junto com o parlamentar Zaqueu Teixeira (PDT).
Enquanto a lei não pega, os produtores das rodas seguem ocupando o espaço público, dando oportunidades e voz para milhares de jovens e batalhando para manter viva a cultura no seu lugar que lhe é de direito: as ruas.