Os 50 anos de ‘A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado’

 em música

Os Mutantes contaram com um time estrelado para seu terceiro e mais festejado disco

Em março de 1970, quando Os Mutantes lançaram seu terceiro disco, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, o Brasil vivia um fervilhante cenário cultural, principalmente na música, em contraposição à ditadura militar que se tornava cada vez mais repressiva com o passar dos anos. Rita Lee e os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista já tinham lançado dois álbuns obrigatórios, Os Mutantes (1968) e Mutantes (1969), que se tornaram clássicos incontestes e uma rica fonte de influências para bandas nacionais e estrangeiras.

As obras eram assombrosas: com a ajuda do maestro Rogério Duprat, o trio de jovens desenvolveu sua sonoridade, sem paralelos mundialmente, a partir de fontes que pareciam díspares, mas contribuíram para a mítica que os cercou entre os seus contemporâneos e ainda reverbera após o fim da banda. Há o rock dos Beatles, a música popular brasileira (do baião a um embrião do BRock), a psicodelia, o tropicalismo, o experimentalismo (mais explorado no segundo disco), colagens mil e arranjos criativos, que ressoam fortemente até hoje. Seguir essa toada, também liricamente, era um desafio para o grupo naqueles anos de chumbo, agora efetivamente um quinteto com o baixista Liminha e o baterista Dinho Leme.

Nesse sentido, os primeiros registros, carregados de temas satíricos, incluindo regravações ousadas e conteúdo aberto a interpretações — herança da Tropicália — tinham de ser ressignificados de alguma forma. A capa e contracapa atacam, de formas diferentes, o conservadorismo vigente no período. Na foto principal, Rita, Arnaldo e Sérgio reproduzem a pintura de Gustav Doré para a obra-prima do poeta Dante, que dá título ao álbum. Na imagem secundária, Rita deita-se com os irmãos Baptista em um sugestivo banquete e Leme, com fardas militares, paira na cena.

Musicalmente, Rita, Arnaldo e Sérgio lançaram-se no rock, funk, doo-woop e, principalmente, no pop sem fronteiras que já praticavam, além de apostarem mais em canções próprias e menos em regravações. O grupo chamou Arnaldo Saccomani para produzir as gravações, uma despedida literal de seus dois primeiros anos e o começo do fim para seus três integrantes principais, que ainda gravariam mais dois LPs juntos. Também em 1970, Rita Lee lançou o fundamental Build Up, o que representaria o início de sua carreira solo e afastamento de seus parceiros. No entanto, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado é a obra definitiva dos Mutantes exatamente por representar um salto de originalidade aliada à ousadia.

A viagem começa com Ando Meio Desligado, regravada por gente como Ney Matogrosso e Marisa Monte, um clássico em festas alternativas país agora. Na faixa, com a participação do consagrado percussionista Naná Vasconcelos, o trio reflete sobre aqueles dias de forma bem particular, como uma declaração: ‘por favor, não leve a mal/eu só quero que você me queira‘. No meio, um solo de teclado de Arnaldo e ao fim um solo de guitarra de Sérgio, uma aula de dinâmica e concisão no que parece ser apenas um devaneio solto. É o conceito do pop em sua melhor forma, com um refrão ganchudo sustentando a estrutura plural da canção.

Quem Tem Medo de Brincar de Amor, um diálogo divertido entre namorados e um convite ao sexo, traz um dueto de Rita e Arnaldo, imitando vozes de americanos com um pezinho no iê-iê-iê e um crescendo com intervenções e ruídos calculados para fazer o ouvinte pensar e se divertir. Rafael Villardi participa da folk-pastoral-macabra Ave, Lúcifer — tanto uma interpretação de uma famosa passagem bíblica como uma ode ao sexo. Naná volta na radiofônica Desculpe, Babe, um hit por natureza e uma das melhores interações entre os Mutantes. A psicodélica Meu Refrigerador Não Funciona anuncia os caminhos que a banda viria a tomar a seguir, uma alucinada jornada por uma instrumentação marcante e que passeia da música sacra ao western spaghetti sem atropelos.

O doo-wop de Hey, Boy, uma alfinetada aos bem nascidos é uma das pequenas pérolas de A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, que ainda soa atual. A regravação de Preciso Urgentemente Encontrar um Amigo, clássico de Roberto e Eramos Carlos, é a que mais lembra os primeiros anos da banda, com coros afinados e muitos teclados dando o tom. A outra regravação, com uma homenagem a Panis et Circensis, joga Chão de Estrelas na roda da pegada popular que estava em voga com os ditos cantores “bregas”, brindando os ouvintes com intensidade e entrega. Jogo de Calçada é uma espécie de resumo do que é o disco, a perfeita junção do pop e rock, com um refrão grudento, melodias assobiáveis e dançantes e harmonias simples e belas.

Haleluia e Oh! Mulher Infiel encerram os trabalhos apontando outras rotas: a psicodelia e o rock progressivo que viriam com O Jardim Elétrico (1971) e Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets (1972). A primeira, com uma linha de baixo espetacular, progride entre o jazz, o rock e o gospel. A segunda, quase totalmente instrumental, é um prelúdio do que viria a ser o trabalho solo de Arnaldo Baptista, brincando com expectativas o tempo inteiro. Pode-se  deve-se discutir a qualidade da discografia mutante mas, entre seus cinco álbuns com a formação clássica, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado é o que mais traduz o espírito do grupo e, 50 anos depois, é seu trabalho mais longevo e marcante.

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