Por que ‘Parasita’ é o melhor filme de 2019

 em cinema e tv

Diretor Bong Joon-ho se consagra com produção mais esmerada da carreira

Parasita – adjetivo de dois gêneros e substantivo masculino
  1. 1.
    BIOLOGIA
    diz-se de ou organismo que vive de e em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano.
  2. 2.
    PEJORATIVOPEJORATIVAMENTE
    diz-se de ou indivíduo que vive à custa alheia por pura exploração ou preguiça.

É difícil encaixar Parasita em conceitos pré-estabelecidos de gênero cinematográfico. Em maio deste ano, o filme levou a prestigiada Palma de Ouro do Festival de Cannes, garantindo a aclamação unânime do júri (Azul é a cor mais quente, de 2013, foi o último a fazê-lo), tornando-se objeto de admiração do bom cinema, com C maiúsculo. De lá para cá, a produção do sul-coreano Bong Joon-ho (Okja, O expresso do amanhã) ganhou destaque em festivais do mundo inteiro e garantiu uma nomeação de seu país para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2020. Diferente do melhor filme do ano passado, Parasita surpreende mais pelo roteiro esmerado de Joon-ho com Han Jin-won, que constrói uma parábola de múltiplas camadas e anula o conceito de filme de arte x filme pipoca, conseguindo cativar por pequenas maravilhas ao longo de pouco mais de 2h de projeção.

A história acompanha a rotina da paupérrima família Kim que vive, literalmente, abaixo do solo em um bairro pobre na Coreia do Sul. O patriarca (Song Kang-ho, ator-fetiche do diretor) busca dias melhores para sua mulher (Jang Hye-jin) e filhos (Choi Woo-shik e Park So-dam), que passam os dias tentando conseguir um sinal de wi-fi no banheiro da casa enquanto fecham caixas de pizza para uma franquia de alimentos o mais rápido possível (afinal, há sempre quem possa se submeter e fazer mais rápido) e tentam se manter com um salário escasso. Um dia, um amigo de Ki-woo, o filho, oferece uma oportunidade que pode trazer melhor sorte para os Kim: que o rapaz ocupe seu lugar como professor de inglês para a filha dos Park, uma abastada família com uma casa dita ‘modelo’ na parte nobre de Seul. Contar mais que a sinopse estragaria a experiência de Parasita, então fique com o trailer.

Assim como Nós, que já resenhamos aqui, Parasita é subversivo tanto na forma como no conteúdo. Joon-ho subverte as expectativas dos espectadores sem subestimar a inteligência do público em nenhum momento. Nesse sentido, o filme conversa com as outras obras do diretor, notadamente O expresso do amanhã e seu comentário social e político, e O hospedeiro, sobre a convivência e relações em família disfarçada de filme de monstro. Aqui, os gêneros mudam com maestria de um frame para outro, de uma tomada para outra, sem solavancos. Parasita tanto pode ser o filme de horror como o trailer vende (muito mal) com um assombroso senso estético — e a arquitetura dos cenários é estupenda — quanto um estudo certeiro sobre luta de classes ou ainda uma comédia com piadas pesadas.

Tudo é estruturado com afinco e não há alguém fazendo o que Bong Joon-ho vem experimentando desde sua estreia e, finalmente, alcança a excelência neste caso. A influência mais óbvia como manipulador vem de Alfred Hitchcock, mas seus personagens não simbolizam algo ou uma ideia como o inglês destacava, todos são parte de uma intricada cadeia de eventos que se desenrola sem pressa até a primeira grande reviravolta. O cineasta não trata os ricaços Park com obviedade e nem os Kims com piedade: como família, seus membros também têm desejos e subjetividades variados, mas Joon-ho também não se furta de condenar a desigualdade social (e o liberalismo econômico) em uma cena tão bonita quanto horripilante, em uma das melhores performances de Song Kang-ho.

Você se verá rindo quando não deveria (algumas vezes) e em outras momentos torcerá para que outro destino seja reservado a determinado(s) personagem(ns). A pura magia da cinética e estética em duas sequências em particular, envolvendo uma chuva torrencial e uma sala de estar, causam deslumbramento. E as cenas vêm como um conjunto de intenções para o que o diretor quer, afinal: buscar a plenitude, a transcendência de quem assiste. Essa fórmula também opera como crítica ao capitalismo, especialmente ao fim da projeção. O próprio arranjo final parece muito rígido por justamente não se resolver, mas o ponto é exatamente esse: mostrar um retrato realista de acontecimentos recentes nas Coreias, cuja mensagem é dolorosamente universal, como mostram as situações adversas em países da Europa e América Latina.

Joon-ho causa incômodo em todos nós ao evidenciar como somos cúmplices de um sistema que não funciona e como nossas interações diárias, desde acionarmos o motorista de aplicativo que usamos por comodidade ao que comemos, ajuda a retroalimentar essas desigualdades. Quem são os verdadeiros parasitas, os Parks ou os Kims? Espertamente, não há uma pretensa fórmula para solucionar a crise (há uma leve sugestão não-violenta, mesmo com a carga mostrada na tela), mas um espaço para a reflexão. A verdade do cineasta é direta, perversa em certo sentido, mas principalmente muitíssimo honesta. Talvez não haja abrigo mais seguro que o seio familiar? Novamente, é difícil mensurar em um mundo marcado por tragédias diárias e poucos respiros. Enquanto isso, Parasita lentamente vai ficando em nossas mentes, dia após dia.

Avaliação: Excelente

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