‘Destacamento Blood’ reflete sobre racismo e reparação em jornada épica de guerra
Novo filme de Spike Lee reforça cineasta como um dos grandes de nosso tempo
Quando Destacamento Blood começa, a assinatura de Spike Lee está em todo lugar. Imagens documentais mostram personalidades como Malcolm X e Angela Davis fazendo discursos antirracismo e antifascismo em meados dos anos 60, época onde a igualdade racial e os direitos civis já eram o centro do debate em um Estados Unidos rachado ao meio por conta de episódios marcados por violência e brutalidade policial, enquanto a Guerra do Vietnã se intensificava. No conflito, que durou de 1955 a 1975, mais de 333 mil pessoas morreram e, nas baixas americanas, 12,5% eram negras, quase o mesmo percentual de homens negros aptos ao recrutamento.
Planos com múltiplas tomadas e cortes mostram o encontro de quatro veteranos do combate, os Bloods, que voltaram ao país para buscar um tesouro escondido durante a batalha e enterrar seu comandante, Stormin’ Norman (Chadwick Boseman, de Pantera Negra). Eddie (Norm Lewis), dono de concessionárias, o bonachão Melvin (Isiah Whitlock Jr.), o “líder” Otis (Clarke Peters) e o atormentado Paul (Delroy Lindo) partem em uma jornada de autoconhecimento onde antigas e novas feridas serão abertas e examinadas com crueza por Lee, que entrega um de seus roteiros mais complexos, dolorosos e potentes em parceria com Kevin Wilmott (a partir dos originais de Danny Bilson e Paul Di Meo), após o estupendo Infiltrado na Klan.
Destacamento Blood à primeira vista bebe da fonte (e alfineta) o clássicoApocalyspe Now, mas a intenção do diretor é muito mais ambiciosa. Em uma jornada épica de pouco mais de 2h30, Spike Lee examina o racismo estrutural com poucas concessões e há ecos de sua filmografia por toda a parte, do imortal Faça a Coisa Certa até suas obras recentes, como Infiltrado na Klan, ao mesmo tempo acenando para pérolas como O Tesouro de Sierra Madre e O Franco Atirador. A pandemia da covid-19 fez com que o filme fosse lançado pela Netflix mas, felizmente, não o tira da corrida dos principais prêmios do cinema. Todo reconhecimento seria merecido ao diretor e aos atores, especialmente para a performance colossal de Delroy Lindo, na melhor atuação de sua carreira.
Toda a jornada dos cinco (cada um com seu brilhantismo) é construída em camadas com maestria, Lee sabe como poucos alternar momentos de comédia e tensão. Nesse sentido, os personagens de Whitlock Jr. e Lewis funcionam como alívio cômico em meio às inevitáveis lágrimas. É impossível não sorrir, por exemplo, quando os personagens principais dançam, em uma tomada destinada ao meme, ‘Got to Give Up’, pedrada de Marvin Gaye, com o cantor praticamente fazendo parte de toda a trama, em uma boate vietnamita. O monólogo de Paul, por outro lado, é uma das cenas mais marcantes e tristes da história do cinema recente. Outro destaque vai para Jonathan Majors, que interpreta o filho de Paul, preocupado com os desvarios do pai em uma subtrama tocante.
Nesse sentido, o jogo de estica e puxa reserva vários momentos surpreendentes, até da marcação histórica, já que o diretor usa os mesmos atores em momentos do passado e do presente. Ao fim, as cartas na mesa são as falsas promessas feitas aos negros, não apenas nascidos nos Estados Unidos, mas de todo o mundo. Se a repetição da história foi o duro alerta emInfiltrado na Klan, a angústia e a reparação são o mote de Destacamento Blood. Os roteiristas não fazem dos homens heróis, mas homens imperfeitos, cada um à sua maneira pelo grau de experiência que tiveram com a guerra.
Ao contrário do que seus detratores risivelmente argumentam, Lee nunca foi reviosinista. Seu interesse é o momento atual, e a produção encerrou-se um ano antes da morte de George Floyd. Com as históricas manifestações antirracistas tomando os EUA, o filme ressoa ainda mais forte. Não à toa, um discurso de Martin Luther King Jr. embala os momentos finais em um contraponto inteligente e ferino ao slogan de campanha de Donald Trump. Mas enquanto em outras notas Lee era mais “observador”, aqui ele reconhece a potência de um movimento como o Black Lives Matter e entrega catarse novamente. E esperança.
Avaliação: Excelente