‘Você Não Estava Aqui’ expõe a precarização do trabalho na era dos apps
Novo filme de Ken Loach examina os efeitos das ‘novas relações’ de trabalho de forma universal
A foto de um entregador de um aplicativo de comida enfrentando uma forte enchente em Belo Horizonte, Minas Gerais, viralizou recentemente na internet. O registro do fotógrafo Alexandre Mota, do jornal O Tempo, é didático ao explicar a precarização do trabalho na era dos apps, tema de Você Não Estava Aqui, de Ken Loach (do aclamado Eu, Daniel Blake). O trabalhador, com um bastão na mão que serve de apoio e guia em meio às águas caudalosas e barrentas, tenta encontrar uma rota de fuga para chegar a um posto de gasolina e pegar um pedido. Essa dinâmica permeia o filme do diretor inglês, que examina os efeitos e consequências destas ‘novas relações de trabalho’ na família Turner, que vive em uma casa modesta em Newcastle, na Inglaterra.
Desempregado há mais de um ano, o patriarca Rickie (Kris Hitchen) recorre à empresa de entregas PDF, largamente baseada em uma gigante do varejo online, para ajudar as pagar as dívidas e trazer mais renda para casa. A esposa, Abbie (Debbie Honeywood), cuidadora de idosos e deficientes e os filhos do casal, o adolescente conturbardo Sebastian (Rhys Stone) e a esperta Liza Jane (Katie Proctor), de 11 anos, têm seus próprios problemas. Respondendo ao cínico Maloney (Ross Brewster), seu patrão na prática, Rickie descobre em pouquíssimo tempo que precisa passar mais tempo fazendo entregas de forma cada vez mais rápida, sacrificando sua saúde e sua relação com sua mulher e filhos no processo.
O maior acerto de Loach em Você Não Estava Aqui é tornar as agruras da família Turner familiares, mesmo porque o tema é universal como em Eu, Daniel Blake, mas muito mais tátil e, por isso mesmo, com efeitos mais devastadores ao espectador. Para exibir a jornada kafkiana de seus personagens, o cineasta ouviu diversos relatos de trabalhadores de aplicativos, todos aterrorizantes em alguma medida, e retratados sem concessões na tela.
Nesse sentido, o filme é pesado e não oferece saída: desde os minutos iniciais há muito pouco respiro em uma corrida literal e figurada contra um abismo tão visível quanto horripilante, que se desvela pouco a pouco. À medida que Maloney, o vilão da história que representa empresas que carregam o falacioso lema “você é seu próprio patrão”, arrocha Rickie em camadas, as consequências viram um caminho sem volta.
Ken Loach e o roteirista Paul Laverty vigorosamente fazem a ansiedade e alienação que abarcam seus personagens serem nossas e os atores correspondem, particularmente Hitchen e Debbie, esta última excelente em seu primeiro papel no cinema. O filme, inclusive, poderia ser centrado mais em sua personagem, que tem camadas densas a oferecer, inclusive moralmente. Mas, novamente, esta é uma viagem de descida que não oferece concessões. As conexões emocionais certamente podem ser vistas em qualquer família ao redor do mundo que se encontra em situação semelhante. Há diferentes histórias sobre trabalhadores nessas companhias, algumas mais “felizes” que as outras. Os pontos em comum, no entanto, falam mais alto. Viagens geralmente viram jornadas físicas excruciantes e o emocional é destruído pelas relações interpessoais muitas vezes duras e toda sorte de perigos que não são compensados e geralmente resultam em punição.
Somos encorajados a aceitar tais modelos econômicos como um fato, em nome de uma dita modernização das relações de trabalho que, como se vê, nada têm de novidade. Loach acerta no ângulo não somente em questões pós-Brexit, como também em construir pontos de reflexão que ressoam muito além de uma sala de cinema. Você Não Estava Aqui é um documento honesto e cruel do que podemos nos tornar: cada vez mais esmagados entre “opções variadas” em nome de necessidades minimamente questionáveis.
Você Não Estava Aqui estreia em 27 de fevereiro
Avaliação: Excelente